quinta-feira, 23 de maio de 2013






"— Estou grávida, filho. Não é de agora, é já de muito tempo. — Muito tempo, quanto? — São anos que guardo essa criança. Nem quero ela nascer nesse tempo. Fica assim dentro de mim, me companha o coração.

Lhe afaguei o ventre, entregando àquele meu escondido irmão a guarda de minha mãe. Deixei o caminho antigo da casa, olhei a pais- agem, o paciente verde. Meus olhos derretiam aquelas visões, fosse para guardar o passado em navegáveis águas. Era noite quando a canoa desatou o caminho. O escuro me fechava, apagando os lugares que foram meus. Sem que eu soubesse começava uma viagem que iria matar certezas da minha infância. Os ensinamentos da escola, os con- selhos do pastor Afonso, os sonhos de Surendra: tudo isso iria esvair na dúvida. Me olhei, e me vendo leve, sem carga, lembrei as palavras de meu pai: — Quem não tem amigo é que viaja sem bagagem."
Mia Couto- Terra Sonâmbula

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