sexta-feira, 31 de maio de 2013

— Mamã me ensinou quando eu era pequena — diz, atando o nó do lenço para se proteger de uma lufada de vento gelado. O dia está frio, mas o céu é azul e o sol está
forte. O sol ilumina a margem cinza​-metálica do rio Rhône e se espalha pela superfície em pequenos fragmentos brilhantes. — Qualquer criança francesa conhece essa canção. Estamos sentadas em um parque num banco de madeira de frente para a água. Enquanto ela traduz as palavras, me sinto maravilhada com a cidade do outro lado do rio. Por ter descoberto meu passado recentemente, ainda me surpreendo por estar num lugar tão repleto de passado, tudo documentado, preservado. É um milagre. Como tudo nesta cidade. Estou admirada com a claridade do ar, com o vento agitando o rio, fazendo a água bater nas margens de pedra, com quanto a luz é rica e intensa e como parece se espalhar em todas as direções. Do banco do parque, posso ver as fortificações cercando o velho centro da cidade e seu emaranhado de ruas estreitas e tortuosas, a torre oeste da catedral de Avignon, a estátua dourada da Virgem Maria brilhando no alto. Pari me conta a história da ponte, do jovem pastor do século XII que dizia que os anjos mandaram construir uma ponte atravessando o rio, que demonstrara a verdade de sua afirmação levantando uma rocha maciça e jogando​-a na água. Ela conta sobre o barqueiro do rio Rhône, que subira na ponte para venerar o patrono da cidade, São Nicolau. E sobre todas as enchentes ao longo dos séculos que erodiram as arcadas e causaram o desabamento da estrutura. Fala essas palavras com a mesma energia rápida e nervosa do início do dia, quando me levou ao Palais de Papes com seu estilo gótico. Tira os fones de ouvido do guia de áudio para me mostrar um afresco, toca meu braço para chamar minha atenção para um entalhe interessante, um vitral, as vigas que se interligam acima de nós. Do lado de fora do palácio papal, ela fala quase sem parar, os nomes de todos os santos e papas e cardeais jorram de seus lábios, enquanto caminhamos pela praça da catedral entre revoadas de pombos, turistas, mercadores africanos, com suas túnicas vistosas, vendendo braceletes e relógios de imitação, o jovem músico de óculos sentado numa caixa de maçãs, tocando “Rapsódia boêmia” ao violão. Não me lembro dessa loquacidade quando de sua visita aos Estados Unidos, e me dá a impressão de uma tática de adiamento, como se estivéssemos andando em volta da coisa que ela realmente quer fazer — que nós vamos fazer —, e que todas essas palavras são também como uma ponte. — Mas você logo vai ver uma ponte de verdade — diz. — Quando os outros chegarem. Vamos todos juntos ver a pont du Gard. Você conhece? Não? Oh là là. C’est vraiment merveilleux. Foi construída pelos romanos no século I, para
transportar água entre Eure e Nîmes. Cinquenta quilômetros! É uma obra​-prima de engenharia, Pari. Estou na França há quatro dias, há dois dias em Avignon. Pari e eu tomamos o TGV numa Paris gelada e encoberta, para descer aqui sob céu claro, um vento quente e um coro de cigarras cantando em cada árvore. Na estação, uma correria maluca para tirar minha bagagem quase me impede de desembarcar, e só consigo descer do trem quando as portas já estão se fechando com um chiado atrás de mim. Faço uma anotação mental para contar a baba como, em três segundos a mais, eu acabaria indo para Marselha. Como ele está?, diz Pari no táxi entre o Charles de Gaulle e o apartamento dela. Na fase seguinte do caminho, respondo. Baba agora vive numa clínica. Quando fui conhecer as instalações e a diretora, Penny, uma mulher alta e frágil de cabelos crespos cor de palha, me mostrou o local, pensei: “Não é tão ruim”. Em seguida eu falei: Não é tão ruim. O lugar era limpo, as janelas davam para um jardim onde, explicou Penny, eles organizavam um chá todas as quartas​-feiras às 16h30. A entrada cheirava suavemente a pinho e canela. Os atendentes, a maioria dos quais vim a conhecer pelo primeiro nome, pareciam corteses, pacientes, competentes. Vi mulheres com rosto devastado, com tufos de pelos no queixo, babando, conversando entre si, grudadas em telas de televisão. Mas a maioria dos residentes não era tão velha. Muitos nem estavam em cadeiras de roda. Acho que eu esperava que fosse pior, falei. É mesmo?, disse Penny, com uma risada amável e profissional. Foi uma indelicadeza. Desculpe. De jeito nenhum. Estamos bem conscientes da imagem que a maioria das pessoas tem de lugares assim. Mas é  claro que esta é a área de vivência da clínica, acrescentou por cima do ombro. Pelo que me falou de seu pai, não sei bem se ele se daria bem aqui. Acho que a Unidade de Assistência à Memória seria mais adequada. Aqui estamos. Usou um cartão para abrir a porta. A unidade isolada não cheirava a pinho e canela. Minhas vísceras tiveram uma convulsão, e meu primeiro impulso foi dar meia​-volta e sair. Penny pegou no meu braço e apertou​-o. Olhou para mim com muita ternura. Lutei comigo mesma no restante do tour, envolvida por um grande surto de culpa. Na manhã em que partiria para a Europa, fui visitar baba. Passei pela entrada da
área de vivência e acenei para Carmen, que é da Guatemala e atende às ligações telefônicas. Andei pela ala comunitária, onde idosos lotavam uma sala para ouvir um quarteto de cordas com universitários vestidos em traje formal. Passei pelo salão de recreação, com computadores, estantes de livros e jogos de dominó, depois pela central de mensagens, com sua série de dicas e anúncios. Você sabia que a soja pode reduzir o seu colesterol ruim? Não se esqueça de que a Hora do Quebra​-cabeça e Reflexões é nesta quarta, às onze horas! Entrei na unidade isolada. Eles não têm reuniões para o chá desse lado da porta, nem bingo. Ninguém aqui começa a manhã com tai chi chuan. Fui até o quarto de baba, mas ele não estava lá. A cama tinha sido arrumada, a TV estava desligada, e havia meio copo de água na mesa de cabeceira. Senti​-me um pouco aliviada. Detesto encontrar baba naquela cama hospitalar, deitado de lado, mão enfiada embaixo do travesseiro, os olhos fundos me fitando sem expressão. Encontrei baba na sala de jogos, afundado numa cadeira de rodas perto da janela com vista para o jardim. Usava pijama de flanela e o seu boné. O colo estava coberto com o que Penny chama de Avental de Fuçar. Tem barbantes que ele pode amarrar e botões que gosta de abotoar e desabotoar. Penny diz que o avental mantém os dedos dele ligeiros. Beijei seu rosto e puxei uma cadeira. Alguém o barbeou e molhou e penteou seu cabelo. Seu rosto cheirava a sabonete. Então, amanhã é o grande dia, baba, digo. Estou indo visitar Pari na França. Você lembra que eu disse que iria? Khaled Hosseini O Silêncio das Montanhas

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