sexta-feira, 31 de maio de 2013

"Enquanto observo Pari dormir, penso no joguinho que baba e eu fazíamos antes de eu pegar no sono. O expurgo dos sonhos ruins, o presente dos sonhos felizes. Lembro​-me do sonho que eu costumava dar a ele. Tomando cuidado para não acordar Pari, estendo o braço e encosto a mão na testa dela com toda a delicadeza. Fecho os olhos. É uma tarde de sol. Eles são crianças outra vez, irmão e irmã, jovens, fortes e de olhar límpido. Estão deitados num campo de grama alta, embaixo da sombra de uma macieira cheia de flores. Sentem a grama morna em suas costas, e o sol em seu rosto cintila ao passar pela agitação dos botões de flores acima deles. Estão descansando sem dormir, alegres, lado a lado, a cabeça dele repousando sobre uma raiz grossa, a dela almofadada pelo casaco que ele dobrou para a irmã. Com os olhos semicerrados, ela vê um pássaro negro pousado num galho. Correntes de ar fresco passam pelas folhas e chegam ao chão. " Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
— Mamã me ensinou quando eu era pequena — diz, atando o nó do lenço para se proteger de uma lufada de vento gelado. O dia está frio, mas o céu é azul e o sol está
forte. O sol ilumina a margem cinza​-metálica do rio Rhône e se espalha pela superfície em pequenos fragmentos brilhantes. — Qualquer criança francesa conhece essa canção. Estamos sentadas em um parque num banco de madeira de frente para a água. Enquanto ela traduz as palavras, me sinto maravilhada com a cidade do outro lado do rio. Por ter descoberto meu passado recentemente, ainda me surpreendo por estar num lugar tão repleto de passado, tudo documentado, preservado. É um milagre. Como tudo nesta cidade. Estou admirada com a claridade do ar, com o vento agitando o rio, fazendo a água bater nas margens de pedra, com quanto a luz é rica e intensa e como parece se espalhar em todas as direções. Do banco do parque, posso ver as fortificações cercando o velho centro da cidade e seu emaranhado de ruas estreitas e tortuosas, a torre oeste da catedral de Avignon, a estátua dourada da Virgem Maria brilhando no alto. Pari me conta a história da ponte, do jovem pastor do século XII que dizia que os anjos mandaram construir uma ponte atravessando o rio, que demonstrara a verdade de sua afirmação levantando uma rocha maciça e jogando​-a na água. Ela conta sobre o barqueiro do rio Rhône, que subira na ponte para venerar o patrono da cidade, São Nicolau. E sobre todas as enchentes ao longo dos séculos que erodiram as arcadas e causaram o desabamento da estrutura. Fala essas palavras com a mesma energia rápida e nervosa do início do dia, quando me levou ao Palais de Papes com seu estilo gótico. Tira os fones de ouvido do guia de áudio para me mostrar um afresco, toca meu braço para chamar minha atenção para um entalhe interessante, um vitral, as vigas que se interligam acima de nós. Do lado de fora do palácio papal, ela fala quase sem parar, os nomes de todos os santos e papas e cardeais jorram de seus lábios, enquanto caminhamos pela praça da catedral entre revoadas de pombos, turistas, mercadores africanos, com suas túnicas vistosas, vendendo braceletes e relógios de imitação, o jovem músico de óculos sentado numa caixa de maçãs, tocando “Rapsódia boêmia” ao violão. Não me lembro dessa loquacidade quando de sua visita aos Estados Unidos, e me dá a impressão de uma tática de adiamento, como se estivéssemos andando em volta da coisa que ela realmente quer fazer — que nós vamos fazer —, e que todas essas palavras são também como uma ponte. — Mas você logo vai ver uma ponte de verdade — diz. — Quando os outros chegarem. Vamos todos juntos ver a pont du Gard. Você conhece? Não? Oh là là. C’est vraiment merveilleux. Foi construída pelos romanos no século I, para
transportar água entre Eure e Nîmes. Cinquenta quilômetros! É uma obra​-prima de engenharia, Pari. Estou na França há quatro dias, há dois dias em Avignon. Pari e eu tomamos o TGV numa Paris gelada e encoberta, para descer aqui sob céu claro, um vento quente e um coro de cigarras cantando em cada árvore. Na estação, uma correria maluca para tirar minha bagagem quase me impede de desembarcar, e só consigo descer do trem quando as portas já estão se fechando com um chiado atrás de mim. Faço uma anotação mental para contar a baba como, em três segundos a mais, eu acabaria indo para Marselha. Como ele está?, diz Pari no táxi entre o Charles de Gaulle e o apartamento dela. Na fase seguinte do caminho, respondo. Baba agora vive numa clínica. Quando fui conhecer as instalações e a diretora, Penny, uma mulher alta e frágil de cabelos crespos cor de palha, me mostrou o local, pensei: “Não é tão ruim”. Em seguida eu falei: Não é tão ruim. O lugar era limpo, as janelas davam para um jardim onde, explicou Penny, eles organizavam um chá todas as quartas​-feiras às 16h30. A entrada cheirava suavemente a pinho e canela. Os atendentes, a maioria dos quais vim a conhecer pelo primeiro nome, pareciam corteses, pacientes, competentes. Vi mulheres com rosto devastado, com tufos de pelos no queixo, babando, conversando entre si, grudadas em telas de televisão. Mas a maioria dos residentes não era tão velha. Muitos nem estavam em cadeiras de roda. Acho que eu esperava que fosse pior, falei. É mesmo?, disse Penny, com uma risada amável e profissional. Foi uma indelicadeza. Desculpe. De jeito nenhum. Estamos bem conscientes da imagem que a maioria das pessoas tem de lugares assim. Mas é  claro que esta é a área de vivência da clínica, acrescentou por cima do ombro. Pelo que me falou de seu pai, não sei bem se ele se daria bem aqui. Acho que a Unidade de Assistência à Memória seria mais adequada. Aqui estamos. Usou um cartão para abrir a porta. A unidade isolada não cheirava a pinho e canela. Minhas vísceras tiveram uma convulsão, e meu primeiro impulso foi dar meia​-volta e sair. Penny pegou no meu braço e apertou​-o. Olhou para mim com muita ternura. Lutei comigo mesma no restante do tour, envolvida por um grande surto de culpa. Na manhã em que partiria para a Europa, fui visitar baba. Passei pela entrada da
área de vivência e acenei para Carmen, que é da Guatemala e atende às ligações telefônicas. Andei pela ala comunitária, onde idosos lotavam uma sala para ouvir um quarteto de cordas com universitários vestidos em traje formal. Passei pelo salão de recreação, com computadores, estantes de livros e jogos de dominó, depois pela central de mensagens, com sua série de dicas e anúncios. Você sabia que a soja pode reduzir o seu colesterol ruim? Não se esqueça de que a Hora do Quebra​-cabeça e Reflexões é nesta quarta, às onze horas! Entrei na unidade isolada. Eles não têm reuniões para o chá desse lado da porta, nem bingo. Ninguém aqui começa a manhã com tai chi chuan. Fui até o quarto de baba, mas ele não estava lá. A cama tinha sido arrumada, a TV estava desligada, e havia meio copo de água na mesa de cabeceira. Senti​-me um pouco aliviada. Detesto encontrar baba naquela cama hospitalar, deitado de lado, mão enfiada embaixo do travesseiro, os olhos fundos me fitando sem expressão. Encontrei baba na sala de jogos, afundado numa cadeira de rodas perto da janela com vista para o jardim. Usava pijama de flanela e o seu boné. O colo estava coberto com o que Penny chama de Avental de Fuçar. Tem barbantes que ele pode amarrar e botões que gosta de abotoar e desabotoar. Penny diz que o avental mantém os dedos dele ligeiros. Beijei seu rosto e puxei uma cadeira. Alguém o barbeou e molhou e penteou seu cabelo. Seu rosto cheirava a sabonete. Então, amanhã é o grande dia, baba, digo. Estou indo visitar Pari na França. Você lembra que eu disse que iria? Khaled Hosseini O Silêncio das Montanhas
"Por qual outra razão fora tão fácil abrir mão de meu sonho da escola de arte, mal esboçando resistência quando baba me pediu para não ir a Baltimore? Por qual outra razão me separei de Neal, o homem de quem fui noiva alguns anos atrás? Ele era dono de uma pequena empresa de instalação de painéis solares. Tinha um rosto marcado, quadrado, do qual gostei no momento em que o conheci na Abe’s Kabob House, quando tomei seu pedido e ele olhou para mim por cima do cardápio e sorriu. Ele era paciente, companheiro e de gênio bom. Não era verdade o que eu disse a Pari sobre ele. Neal não me trocou por uma mulher mais bonita. Eu sabotei as coisas com ele. Mesmo quando ele prometeu se converter ao Islã, assistir às aulas de persa, eu encontrei outros defeitos nele, outras desculpas. Entrei em pânico, enfim, e corri de volta para os recantos, as fendas e as reentrâncias da vida em minha casa. Ao meu lado, Pari começa a se levantar. Vejo quando desamassa as dobras do vestido e, mais uma vez, me sinto espantada com o milagre de ela estar aqui, a centímetros de mim. — Eu quero mostrar uma coisa a você — digo. Também me levanto e vou até o meu quarto. Uma das peculiaridades de nunca sair de casa é que ninguém limpa o seu quarto nem oferece seus brinquedos em vendas de garagem; ninguém dá as roupas que não servem mais. Sei que, para uma mulher de quase trinta anos, tenho relíquias demais de minha infância jogadas por aí, a maior parte enfurnada num grande baú ao pé da minha cama, cuja tampa agora levanto. Dentro, velhas bonecas, o pônei roxo que veio com uma escova para pentear a crina, os livros de desenho, todos os cartões de aniversário e de Natal que fiz para meus pais na escola com feijões, purpurina e pequenas estrelas brilhantes. Da última vez que nos falamos, Neal e eu, quando acabamos com tudo, ele disse: Eu não posso ficar esperando você, Pari. Não vou ficar esperando você crescer. Fecho a tampa e volto à sala de visita, onde Pari se acomodara no sofá em frente a baba. Sento ao lado dela. " Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"Ela me conta sobre a Nova Shadbagh — uma cidade de verdade, com escolas, clínica, um bairro comercial, até um pequeno hotel —, construída a cerca de três quilômetros do local da antiga aldeia. Foi nessa cidade que Pari e o tradutor haviam procurado pelo meio​-irmão dela. Eu soube de tudo isso durante aquela primeira e longa conversa telefônica com Pari, soube que ninguém na cidade conhecia Iqbal, até Pari encontrar um velho que o conhecia, um velho amigo de infância de Iqbal, que o tinha visto acampado com a família num campo aberto próximo ao velho moinho. Iqbal disse a esse velho amigo que, enquanto estava no Paquistão, recebia
dinheiro do irmão mais velho, que morava no norte da Califórnia. Eu perguntei, disse Pari ao telefone, perguntei diversas vezes se Iqbal havia falado o nome do irmão, e o velho respondeu que sim — Abdullah. E então, alors, depois disso o resto não foi tão difícil. Quero dizer, encontrar você e seu pai. Perguntei ao amigo de Iqbal onde ele estava agora, continuou Pari. Perguntei o que havia acontecido com ele, mas o velho respondeu que não sabia. Mas parecia muito nervoso e não olhou para mim quando disse isso. E eu acho, Pari, acho que alguma coisa ruim pode ter acontecido com Iqbal. Ela vira mais algumas páginas e me mostra a fotografia dos filhos, Alain, Isabelle e Thierry, imagens dos netos em festas de aniversário, ela posando de maiô na beira de uma piscina. O apartamento em Paris, as paredes em tons pastel e as venezianas brancas até o teto, as prateleiras de livros. O atulhado escritório na universidade onde ela ensinava matemática antes de ter de se aposentar por causa da artrite reumatoide. Continuo virando as páginas do álbum enquanto ela vai enunciando as legendas das fotos, a velha amiga Collette, Albert, o marido de Isabelle, Eric, o marido de Pari, que era dramaturgo e morrera de um ataque cardíaco em 1997. Paro numa foto dos dois, impossivelmente jovens, sentados lado a lado em almofadas coloridas numa espécie de restaurante, ela com uma blusa branca, ele de camiseta, o cabelo liso e comprido, preso num rabo de cavalo. — Essa foi a noite em que nos conhecemos — diz Pari. — Foi uma armadilha. — Ele tinha uma cara boa. Pari aquiesce. — Sim. Quando nos casamos, eu pensei, ah, nós ainda temos muito tempo juntos pela frente. Pensei comigo mesma, trinta anos, pelo menos, talvez quarenta, cinquenta, se tivermos sorte. Por que não? — Olha para a foto, perdida no tempo, depois abre um leve sorriso. — Mas o tempo é como um encantamento. A gente nunca tem quanto imagina. —Afasta​-se e dá um gole no café." Khaled Hosseini - O Silêncio das Montanhas
"É COMO VER A FOTOGRAFIA de uma personalidade do rádio; elas nunca são do jeito que a gente imaginava quando ouvia a voz no carro. Para começar, ela é velha. Ou envelhecida. Claro que eu sabia disso. Já havia feito as contas e calculado que devia estar perto dos sessenta anos. Mas é difícil conciliar essa mulher esbelta, de cabelos grisalhos, com a garotinha que sempre visualizei, uma menina de três anos, de cabelo escuro ondulado e sobrancelhas longas quase se tocando, como as minhas. E é mais alta do que eu imaginava; percebo isso ainda que ela esteja sentada num banco, perto de um quiosque de sanduíche, olhando ao redor com timidez, como se estivesse perdida. Ela tem ombros estreitos e uma compleição delicada, um rosto agradável, o cabelo bem puxado para trás, preso por uma bandana de crochê. Está usando brincos de jade, jeans desbotado, um suéter comprido salmão e um lenço amarelo no pescoço; sua elegância europeia é informal. No último e​-mail, avisou que usaria o lenço para que eu pudesse reconhecê​-la com mais facilidade. Ela ainda não me viu, e fico algum tempo entre os viajantes empurrando carrinhos de bagagem pelo terminal, os motoristas segurando cartazes com o nome dos clientes. Meu coração está pulando no peito; penso comigo mesma: É ela. Essa é ela. Essa é realmente ela. Logo em seguida, nossos olhares se cruzam, e a expressão dela demonstra um reconhecimento. Faz um aceno. Nós nos encontramos perto do banco. Ela sorri, meus joelhos bambeiam. O sorriso é exatamente igual ao de baba — a não ser pelo intervalo do tamanho de um grão de arroz entre os dentes da frente —, caído para a esquerda, o que a faz franzir o rosto e quase fechar os olhos, e também inclinar um pouco a cabeça. Ela se levanta e olho para as mãos, as juntas nodosas, os dedos recurvados a partir da primeira articulação, os calombos do tamanho de ervilhas no pulso. Sinto uma torção no estômago, deve doer muito.
Nós nos abraçamos, e ela me beija as bochechas. A pele é suave como feltro. Quando nos afastamos, ela me mantém a distância, mãos em meu ombro, examinando meu rosto como se estivesse apreciando uma pintura. Uma umidade recobre seus olhos, que estão animados e felizes. — Desculpe ter chegado tão tarde. — Não tem problema — comenta. — Finalmente nos encontramos! Estou tão contente! — O sotaque francês é mais forte pessoalmente do que ao telefone. — Também estou muito contente — digo. — Como foi a viagem? — Tomei um comprimido, senão não conseguiria dormir. Fico acordada o tempo todo. Porque estou muito feliz e animada. — Ela mantém o olhar fixo em mim e sorri, como se tivesse medo de quebrar o encanto caso desviasse o olhar, até o alto​- falante acima de nós alertar os passageiros que relatem qualquer bagagem abandonada. O rosto dela, então, relaxa um pouco. " Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"NA NOITE DO MESMO DIA em que retornou, baba jan fez uma festa em casa. Adel estava ao lado do pai, na cabeceira da grande toalha estendida no chão para a refeição. Baba jan às vezes preferia sentar no chão, comer com os dedos, especialmente se estivesse reunido com amigos dos tempos da Jihad. Para relembrar aqueles dias nas cavernas, brincava. As mulheres comiam à mesa da sala de jantar, com garfos e colheres, a mãe de Adel na cabeceira. Adel ouvia a conversa ecoando pelas paredes de mármore. Uma das mulheres, de ancas largas e cabelo comprido tingido de vermelho, estava noiva e ia se casar com um dos amigos de baba jan. À tarde, tinha mostrado à mãe de Adel fotos de sua câmera digital de uma loja de artigos de casamento a que havia ido em Dubai. Depois do jantar, durante o chá, baba jan contou a história de sua unidade, que certa vez emboscara uma coluna soviética na entrada de um vale do norte. Todos prestaram atenção. — Quando eles entraram na linha de tiro — disse baba jan, passando distraidamente a mão na cabeça de Adel —, nós abrimos fogo. Acertamos o veículo da ponta, depois alguns jipes. Achei que eles iam recuar ou forçar a passagem. Mas os filhos da mãe pararam, desceram e responderam ao fogo. Dá para acreditar?
Um murmúrio percorreu a sala. Cabeças balançaram. Adel sabia que pelo menos metade dos homens na sala eram ex​-mujahidins. — Nós estávamos em maior número, talvez em três para um, mas eles tinham armamento pesado, e não demorou muito para nós sermos atacados! Nossas posições nos pomares estavam sob fogo. Logo todo mundo estava se dispersando. Saímos correndo. Eu e um sujeito, Muhammad alguma coisa, fugimos juntos. Corremos lado a lado num campo de parreiras, não desses com estacas e arames, mas do tipo que as pessoas deixam crescer da terra. Balas voavam por toda parte, nós continuamos correndo para sobreviver e, de repente, tropeçamos e caímos. Num segundo, eu estava correndo outra vez, porém não vi sinal do tal Muhammad qualquer coisa. Eu viro para trás e grito, Tira esse rabo daí, seu jumento! Baba jan fez uma pausa para efeitos dramáticos. Levou a mão aos lábios para conter o riso. — Então, ele aparece e começa a correr, e vocês acreditam que o filho da mãe maluco está carregando duas braçadas de uvas! Uma embaixo de cada braço! Risadas irromperam. Adel também riu. O pai esfregou as costas dele e puxou​-o mais para perto. Alguém começou a contar outra história, baba jan pegou o maço de cigarros ao lado do prato. Mas não conseguiu acender, pois de repente um vidro se quebrou em algum lugar da casa. As mulheres gritaram na sala de jantar. Alguma coisa metálica, talvez um garfo ou uma faca de manteiga, caiu com ruído no mármore. Os homens se levantaram. Azmaray e Kabir entraram correndo na sala, fuzis engatilhados. — Foi na porta da frente — disse Kabir, e, assim que falou, mais um vidro foi quebrado. — Espere aqui, comandante Sahib, nós vamos dar uma olhada — disse Azmaray. — De jeito nenhum! — rosnou baba jan, já avançando. — Não vou me esconder na minha própria casa. Partiu em direção ao vestíbulo, seguido por Adel, Azmaray, Kabir e todos os outros homens. No caminho, Adel viu Kabir pegar um espeto de metal que usavam para atiçar o fogo na lareira no inverno. Adel viu a mãe também correndo para junto deles, o rosto pálido e retraído. Quando chegaram ao vestíbulo, uma pedra entrou pela janela e estilhaços de vidro se espalharam pelo chão. A mulher de cabelo vermelho deu um grito, a que estava para se casar. Lá fora, alguém estava berrando. — Como diabos eles passaram pelo guarda? — alguém perguntou atrás de Adel. — Comandante Sahib, não! — bradou Kabir, porém o pai de Adel já havia aberto a porta.
A luz estava diminuindo, mas era verão, e o céu ainda estava pintado de ama" Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"Falar sobre o Afeganistão — e é chocante como isso aconteceu de maneira tão rápida e imperceptível — ficou parecido com falar sobre um filme recém​-assistido, emocionalmente exaustivo, e cujos efeitos já começam a desvanecer." Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
 "A chuva provocou uma enchente, e umas duzentas famílias tiveram de ser evacuadas de helicóptero de Shomali, no norte de Cabul. A
segurança foi reforçada por causa do apoio de Cabul à guerra de Bush no Iraque, e eram esperadas represálias da Al-Qaeda. A última linha dizia: “Você já falou com seu chefe?”. Abaixo do e​-mail, Amra colou um pequeno parágrafo de Roshi, traduzido por ela. Diz:
Salaam kaka Idris, Inshallah você tenha chegado bem na América. Tenho certeza de que sua família está muito feliz em revê​-lo. Todos os dias eu penso em você. Todos os dias assisto aos filmes que você comprou para mim. Gosto de todos. Só fico triste de você não estar aqui para assistir comigo. Estou me sentindo bem, e Amra jan está cuidando bem de mim. Por favor, diga Salaam à sua família por mim. Inshallah nos vejamos em breve na Califórnia. Meus respeitos, Roshana.
Idris responde o e​-mail, agradecendo, dizendo que sente muito ao saber da enchente. Espera que as chuvas diminuam. Diz que vai discutir o caso de Roshi com o chefe esta semana. Abaixo, escreve:
Salaam Roshi jan, Obrigado pela delicada mensagem. Fiquei muito feliz em ouvir notícias suas. Também penso muito em você. Contei tudo sobre você para a minha família, e estão todos ansiosos por conhecê​-la, principalmente meus filhos, Zabi jan e Lemar jan, que perguntam muito sobre você. Todos estão ansiosos por sua chegada. Tudo de bom. Kaka Idris.
Ele desliga o computador e vai se deitar." Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
 "Cabul é... — Idris busca as palavras certas. — ... mil tragédias por quilômetro quadrado. — Ter ido lá deve ter sido um grande choque cultural. — Sim, foi mesmo. — Idris não diz que o verdadeiro choque cultural foi voltar. No final, a conversa muda para a recente onda de roubos de correspondência na vizinhança. Deitado na cama naquela noite, Idris fala: — Você acha que precisamos de tudo isso? — Tudo isso? — repetiu Nahil. Ele a vê pelo espelho, escovando os dentes na pia. " Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"IDRIS ANDA PELO CORREDOR LEVANDO a caixa, passando por paredes decoradas com grafites, quartos com cortinas de plástico servindo de portas, um velho descalço arrastando os pés com um tapa​-olho, pacientes acomodados em quartos quentes e abafados onde faltam lâmpadas. Um cheiro de corpos e suor por toda parte. No fim do corredor, para em frente à cortina antes de abrir. Sente uma pontada no coração quando vê a garota sentada na beira da cama. Amra está ajoelhada na frente, escovando os dentes dela. Há um homem no outro lado do quarto, magro, queimado de sol, com uma barba desgrenhada e cabelos pretos eriçados. Quando Idris entra, o homem logo se levanta, põe a mão no peito e faz uma vênia. Idris é surpreendido mais uma vez pela facilidade com que os locais percebem que ele é um afegão ocidentalizado, pelo modo como o cheiro de dinheiro e poder garante privilégios nessa cidade. O homem diz a Idris que é tio de Roshi pelo lado materno. — Você voltou — diz Amra, mergulhando a escova numa tigela de água. — Espero que não haja problema. — Por que haveria? — pergunta ela. Idris limpa a garganta. — Salaam Roshi. A garota olha para Amra pedindo permissão. A voz dela é um murmúrio agudo e hesitante. — Salaam." Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"Roshi morava com os pais, duas irmãs e o irmão mais novo numa aldeia entre Cabul e Bagram. Em uma sexta​-feira do mês passado, o tio, irmão mais velho do pai, veio fazer uma visita. Durante quase um ano, o pai de Roshi e o tio disputaram o terreno onde Roshi vivia com a família, um terreno que o tio achava que lhe pertencia de direito, por ser o irmão mais velho, mas que o pai havia passado para o irmão mais novo e mais favorecido. No dia em que ele fez a visita, estava tudo bem. — Ele diz que quer terminar a briga. Para a ocasião, a mãe de Roshi matou duas galinhas, fez uma grande panela de arroz com passas, comprou romãs frescas no mercado. Quando o tio chegou, ele e o pai de Roshi se beijaram e se abraçaram. O pai de Roshi abraçou o irmão com tanta força que ergueu os pés dele do tapete. A mãe de Roshi chorou de alegria. A família sentou​-se para comer. Todos repetiram mais de uma vez. Depois comeram as romãs. Em seguida, foram servidos chá-verde e balas. O tio pediu licença para usar o banheiro. Quando voltou, estava com um machado na mão. — Do tipo de cortar árvore — explica Amra. O primeiro a partir foi o pai de Roshi. — Roshi contou que o pai nem soube o que aconteceu. Não viu nada. Um só golpe no pescoço, por trás. Quase foi decapitado. A mãe de Roshi foi a seguinte. Roshi viu a mãe tentar lutar, mas depois de várias machadadas no rosto e no pescoço ela foi silenciada. A essa altura, as crianças estavam gritando e fugindo. O tio foi atrás delas. Roshi viu uma das irmãs tentar chegar ao corredor, mas o tio a agarrou pelos cabelos e a jogou no chão. A outra irmã chegou ao corredor. O tio foi atrás, e Roshi o ouviu chutando a porta do banheiro, os gritos, depois o silêncio. — Então Roshi resolveu fugir com o irmão mais novo. Saíram correndo, correram em direção à porta da frente, mas ela estava trancada. O tio trancou, é claro. Conseguiram chegar ao quintal, em pânico e desespero, talvez esquecendo que não havia portão no quintal, nenhuma saída, os muros muito altos para escalar. Quando o tio saiu da casa e se aproximou, Roshi viu o irmão, que tinha cinco anos, se jogar no tandoor, onde uma hora antes a mãe havia assado pão. Roshi o ouviu gritando nas chamas enquanto tropeçava e caía. Virou​-se para olhar, a tempo de ver o céu azul e o machado descendo. E depois, nada." Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"— Não, eu entendi — diz ela. — Você quer dizer que as histórias deles são um presente que dão a você. — Um presente. Sim. Tomam um pouco de vinho. Conversam por algum tempo; para Idris é o primeiro diálogo que entabula desde que chegou a Cabul, sem zombarias sutis, sem a vaga reprovação que sentiu nos habitantes, em funcionários do governo, nas agências humanitárias. Pergunta sobre o que ela faz, e Amra responde que já trabalhou em Kosovo com a ONU, em Ruanda depois do genocídio, na Colômbia e também no Burundi. Trabalhou com prostitutas infantis no Camboja. Está em Cabul há um ano, pela terceira vez, agora com uma pequena ONG, prestando serviços no hospital Wazir Akbar Khan e dirigindo uma clínica móvel aos domingos. Casada duas vezes, divorciada duas vezes, sem filhos. Idris acha difícil adivinhar a idade de Amra, mas deve ser mais nova do que parece. Existe um brilho de beleza fugidia, uma forte sensualidade, atrás dos dentes amarelados, das bolsas de fadiga abaixo dos olhos. Em quatro anos, talvez cinco, pondera Idris, aquilo também terá desaparecido. " Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"Bem — ela diz, de forma coquete. — O que você diz a seu favor, Timur? Nos Estados Unidos, Timur é chamado de Tim. Mudou o nome depois do Onze de Setembro e garante que desde então quase duplicou seus rendimentos. Livrar​-se daquelas duas letras, disse a Idris, já havia feito mais pela carreira dele que um diploma universitário — isso se tivesse ido à faculdade, o que ele não fez; Idris é o acadêmico da família Bashiri. Mas, desde a chegada a Cabul, Idris só viu o primo se apresentar como Timur. É uma duplicidade inofensiva, até necessária. Mas irrita.
— Desculpe pelo que aconteceu ali dentro — diz Timur. — Talvez eu castigue você. — Calma, gatinha. Amra muda o olhar para Idris. — Então. Ele é o caubói arrojado, e você, você é sensível e calado. Você é, como se diz? Introvertido? — Ele é médico — diz Timur. — Ah? Deve ser um choque para você, então. Este hospital? — O que aconteceu com ela? — pergunta Idris. — Com Roshi. Quem fez isso? Amra fecha a cara. Quando fala, é em tom determinado e maternal. — Eu luto por ela. Luto contra o governo, a burocracia do hospital, os neurocirurgiões canalhas. Luto por ela passo a passo. E não paro. Ela não tem ninguém. Idris diz: — Eu achei que havia um tio. — Ele também é canalha. — Bate a cinza do cigarro. — Então. Por que vieram aqui, meninos? Timur começa a explicar. No geral, o que ele diz é mais ou menos verdade. Que eles são primos, que as famílias fugiram depois da invasão soviética, que passaram um ano no Paquistão antes de se estabelecer na Califórnia no início dos anos 1980. Que é a primeira vez que voltam em vinte anos. Mas acrescenta que voltaram para se “reconectar”, para se “educar”, para “testemunhar” o rescaldo de todos esses anos de guerra e destruição. Os dois querem voltar aos Estados Unidos, continua, para se conscientizar, angariar fundos, para “retribuir”. — Nós queremos retribuir — afirma, repetindo aquela afirmação batida com tanta seriedade que deixa Idris envergonhado. Claro que Timur não revela que eles vieram para reivindicar o imóvel em Shar​-e​- Nau, que pertencia aos pais deles, a casa onde ele e Idris viveram os primeiros catorze anos da vida. O valor do imóvel agora é astronômico, por conta dos milhares de funcionários de agências assistenciais estrangeiras que chegaram a Cabul precisando de um lugar para ficar. Estiveram lá naquela manhã, na casa, que atualmente serve como moradia para um desordenado grupo de soldados da Aliança Norte de aparência cansada. Quando estavam indo embora, encontraram um homem de meia​-idade, que morava três casas abaixo, do outro lado da rua, um cirurgião-plástico grego chamado Markos Varvaris. Convidou os dois para almoçar e se ofereceu para levá​-los a uma turnê pelo hospital Wazir Akbar Khan, onde a ONG em que trabalhava mantinha um escritório. Também os convidou para uma festa naquela noite. Eles só souberam da garota quando chegaram ao hospital " Khaled  Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"Quando consegui que concordasse com a cadeira de rodas, nosso antigo ritual dos passeios matinais foi restaurado. Saíamos de casa, e eu empurrava a cadeira pela rua, cumprimentando os vizinhos quando passávamos. Um deles era o sr. Bashiri, um jovem recém​-formado pela Universidade de Cabul que trabalhava no Ministério do Exterior. Ele, o irmão e as respectivas esposas haviam se mudado para uma residência grande, de dois andares, três casas abaixo e do outro lado da rua. Às vezes, o encontrávamos esquentando o automóvel de manhã para ir ao trabalho, e sempre parávamos para trocar amenidades. Costumava ir com Suleiman até o parque Shar​-e​- Nau, onde sentávamos à sombra dos olmos e observávamos o tráfego, os taxistas espalmando as mãos na buzina, o ringue​-ringue das bicicletas, jumentos zurrando, pedestres suicidas entrando na frente dos ônibus. Acabamos nos tornando uma presença conhecida, Suleiman e eu, nas ruas do bairro, no parque, e costumávamos parar para bate​-papos bem​-humorados com jornaleiros e açougueiros e algumas conversas educadas com os jovens policiais que orientavam o tráfego. Conversávamos com taxistas encostados nos para​-lamas, esperando passageiros. Às vezes, eu o acomodava no banco traseiro do velho Chevrolet, arrumava a cadeira de rodas no porta​-malas e dirigia até Paghman, onde sempre conseguíamos encontrar um belo gramado e um pequeno regato gorgolejante na sombra das árvores. Depois que fazíamos um lanche ele tentava desenhar, mas era uma batalha, pois o derrame havia afetado sua mão direita, a dominante. Mesmo assim, usando a mão esquerda, conseguia retratar árvores, colinas e touceiras de flores silvestres com muito mais arte do que eu conseguiria com minhas faculdades intatas. No fim, Suleiman acabava se cansando e cochilava, deixando o lápis escorregar da mão. Eu cobria as pernas dele com uma manta e deitava na grama ao lado da cadeira. Ouvia a brisa roçando nas árvores, olhava para o céu, as tiras de nuvens flutuando lá em cima. Cedo ou tarde, meus pensamentos vagavam até Nila, que agora estava a um continente de distância de mim. Visualizava o brilho suave de seu cabelo, o modo como balançava o pé, as sandálias batendo nos calcanhares e o estalido do cigarro queimando. Pensava na curva de suas costas, no volume dos seios. Ansiava por estar perto dela outra vez, ser envolvido pelo seu cheiro, sentir o velho e conhecido tremor no coração quando ela tocava na minha mão. Ela havia prometido me escrever, e, embora os anos tivessem passado e com toda probabilidade ela já tivesse me esquecido, não posso agora mentir e dizer que não sentia uma golfada de ansiedade cada vez que recebíamos correspondência na casa." Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"O sr. Wahdati estava na cama, vestindo uma camiseta branca, emitindo sons estranhos e guturais. O rosto estava pálido, o cabelo despenteado. Tentava seguidamente, sem conseguir, fazer alguma coisa com o braço direito, e notei horrorizado que uma linha de saliva escorria pelo canto da boca. — Nabi! Faça alguma coisa! Pari, então já com seis anos, havia entrado no quarto e agora estava ao lado da cama do sr. Wahdati, puxando sua camiseta. — Papa? Papa? — O sr. Wahdati olhou para ela, olhos esbugalhados, a boca abrindo e fechando. Pari gritou. " Khaled  Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"Como parte do acordo com os Wahdati, a família de Pari não podia fazer visitas. Não podiam estabelecer nenhum contato com ela. Um dia, logo depois de Pari ter se mudado para a casa dos Wahdati, fui de carro até Shadbagh. Levei um pequeno presente para Abdullah e o filhinho da minha irmã, Iqbal, que na época começava a andar." Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"Para mim, era nítido que, todas as vezes que levava Nila e o sr. Wahdati até a casa da velha, a atmosfera no banco de trás ficava tensa e pesada, e eu sabia pelo franzido magoado do cenho de Nila que eles haviam discutido. Lembro que quando meus pais brigavam eles não paravam até uma nítida vitória ser declarada. Era a maneira de eliminar o mal​-estar, chegar a um veredito, não permitir que aquilo vazasse na normalidade do dia seguinte. Não era assim com os Wahdati. As brigas não terminavam, se dissipavam, como uma gota de tinta num copo de água, deixando uma mancha residual que não se desfazia. Não era necessário nenhum ato de acrobacia intelectual para deduzir que a velha não aprovava a união e que Nila sabia disso. Enquanto continuávamos essas conversas, Nila e eu, uma pergunta continuava pululando em minha cabeça. Por que ela teria se casado com o sr. Wahdati? Eu não tinha coragem de perguntar. Tal invasão de privacidade não fazia parte da minha natureza. Só podia inferir que algumas pessoas, principalmente as mulheres, optam pelo casamento — mesmo um casamento infeliz como esse — para fugir de uma infelicidade ainda maior. Um dia, no outono de 1950, Nila me chamou. — Eu quero que você me leve a Shadbagh — disse. Explicou que queria conhecer minha família, ver o lugar onde eu havia nascido. Disse que eu estava servindo suas refeições e dirigindo com ela em Cabul já havia um ano e quase não sabia nada sobre mim. O pedido me deixou confuso, para dizer o mínimo, pois era incomum alguém na posição dela querer viajar aquela distância para conhecer a família de um empregado. Em igual medida, me senti contente por Nila ter se interessado tanto por mim e também apreensivo, pois já previa meu desconforto e, sim, minha vergonha, quando ela visse a pobreza do lugar onde eu havia nascido. " Khaled Hossseini- O Silêncio das Montanhas
 "Mas foi a mim que ela procurou. Eu era o único, acredito, incluindo o próprio marido, a quem ela abria sua solidão. Em geral, era ela quem conduzia a conversa, o que era muito bom para mim; eu me sentia feliz só de ser o vaso onde ela despejava suas histórias. Ela me contou, por exemplo, de uma viagem de caça que fizera a Jalalabad com o pai, como fora perseguida por pesadelos durante semanas com o cervo morto de olhos vidrados. Disse que tinha ido com a mãe à França quando era criança, antes da Segunda Guerra Mundial. Para chegar lá, teve de viajar de trem e navio. Descreveu como sentiu o balançar das rodas do trem nas
costelas, que se lembrava bem das cortinas presas em ganchos e das cabines separadas, dos apitos e chiados da locomotiva a vapor. Falou sobre as seis semanas que passara na Índia um ano antes, com o pai, quando ficou muito doente. Eventualmente, quando ela se virava para bater a cinza do cigarro num pires, eu dava uma rápida espiada no esmalte vermelho de suas unhas, no resplendor dourado dos tornozelos depilados, no arco alto do pé e, sempre, nos seios grandes e de formas perfeitas. Havia homens nesta terra, eu me admirava, que tinham tocado naqueles seios e os beijado enquanto faziam amor com ela. O que mais restaria a fazer na vida para alguém que já tivesse feito isso? Para onde poderia ir um homem, depois de ter estado no topo do mundo? Somente com um grande esforço eu conseguia desviar o olhar para um local mais seguro quando ela olhava para mim."
Khaled Hosseini -O  Silêncio das Montanhas
" Uma história é como um trem em movimento: não importa onde embarquemos, cedo ou tarde estaremos fadados a chegar ao nosso destino. Mas acho que devo começar esta história com a mesma coisa que a encerra." Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"Parwana continua andando em direção à sua nova vida. Segue caminhando, a escuridão ao redor formando um útero materno, e, quando sobe o véu, quando contempla a névoa do amanhecer e vê um fiapo de luz mais clara vindo do leste
atingir o lado de uma pedra, é como se estivesse nascendo." Khaled Hossseini - O Silêncio das Montanhas
"Juro pela tua vida que, após contemplar teu rosto, ainda que no reino mundano, tudo não passa de mera fantasia e fábula. O jardim está perplexo: qual é a folha e qual a flor? Os pássaros estão consternados: qual é a armadilha e qual a isca?"
Um poema de Rumi, das lições do mulá Shekib.


Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"Mas não havia como esquecer. Pari insistia em pairar nos limites do campo visual
de Abdullah aonde quer que ele fosse. Era como o pó que se apegava à sua camisa. Estava nos silêncios que se tornaram tão frequentes na casa, silêncios que intumesciam entre as palavras trocadas, às vezes frios e vazios, às vezes prenhes de coisas que não eram ditas, como uma nuvem cheia de uma chuva que jamais caía. Algumas noites ele sonhava que estava outra vez no deserto, sozinho, rodeado pelas montanhas e, a distância, um único e cintilante ponto de luz, acendendo, apagando, acendendo, apagando, como uma mensagem. Abriu a caixa de chá. Estavam todas lá, as penas de Pari, penas que caíram de galos, patos, pombos, e também a pena do pavão. Jogou a pena amarela na caixa. Um dia, pensou. Quem sabe. Seus dias em Shadbagh estavam contados, como os de Shuja. Agora ele sabia disso. Não havia mais nada para ele aqui. Não havia mais um lar. Ia esperar até o inverno passar, até o degelo da primavera, levantaria numa manhã antes do amanhecer e sairia pela porta. Escolheria uma direção e começaria a andar. Continuaria andando até estar o mais longe possível de Shadbagh, para onde o levassem seus pés. E se um dia, caminhando por um vasto campo aberto, se sentisse tomado pelo desespero, iria parar de andar, fechar os olhos e pensar na pena de falcão que Pari achara no deserto. Imaginaria a pena soltando-se do pássaro, perto das nuvens, um quilômetro acima do mundo, rodopiando e girando nas violentas correntes, arremessada por tumultuadas rajadas de vento por quilômetros e quilômetros de deserto e montanhas, para afinal pousar, entre tantos lugares e, contra tantas probabilidades, aos pés daquela pedra, para sua irmã encontrar. Teria uma sensação de assombro, e de esperança também, que tais coisas acontecessem. E mesmo sem se deixar enganar por essa sensação, reuniria suas forças, abriria os olhos e continuaria andando." Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"Abdullah não lembrava, como se alguma coisa pesasse em cada palavra que falava. Recolhia​-se em longos silêncios, a cara fechada. Não contava mais histórias, nunca mais contou uma história desde que voltara de Cabul com Abdullah. Talvez, pensava Abdullah, o pai tivesse vendido também sua musa aos Wahdati. Ausente. Desaparecida. Sem deixar vestígio. Sem explicação. Nada a não ser as palavras de Parwana: Tinha de ser ela. Desculpe, Abdullah. Tinha de ser ela. O dedo cortado, para salvar a mão. Ajoelhou​-se no chão atrás do moinho, ao pé da esquálida torre de pedra. Tirou as luvas e cavou a terra. Pensou nas sobrancelhas pesadas da irmã, na testa ampla e redonda, no sorriso de dentes separados. Ouviu na cabeça o titilar de sua risada rolando pela casa, como antes. Pensou no tumulto que irrompeu quando eles voltaram do bazar. Pari estava em pânico. Gritava. Tio Nabi saiu com ela rapidamente. Abdullah escavou a terra até os dedos tocarem num metal. Remexeu abaixo da superfície e retirou uma caixa de chá do buraco. Raspou a sujeira gelada da tampa. Havia algum tempo ele vinha pensando muito na história que o pai havia contado na noite anterior à viagem a Cabul, do velho camponês Baba Ayub e o dev. Abdullah estava em um lugar onde Pari costumava ficar, a ausência dela era como um cheiro saindo da terra debaixo dos pés. As pernas fraquejaram, o coração desabou sobre si mesmo, ele ansiava por um gole da poção mágica que o dev dera a Baba Ayub, para poder esquecer. " Khaleb Hosseini - O Silêncio das Montanhas
"O sol estava caindo no horizonte. Abdullah ainda conseguia distinguir o velho moinho cinzento e esquálido assomando atrás das paredes de barro. As pás faziam um rangido estridente sempre que uma lufada penetrante soprava das colinas. No verão, o moinho era basicamente ocupado pelas garças azuis, mas, agora que o inverno havia chegado, as garças partiram, e os corvos tomaram o seu lugar. Toda manhã, Abdullah acordava com seus pios e grasnados ásperos. Alguma coisa chamou sua atenção, à direita, no chão. Andou até lá e se ajoelhou. Uma pena. Pequena. Amarela. Tirou uma das luvas e a pegou. Naquela noite, eles iam a uma festa, ele, o pai e seu pequeno meio​-irmão Iqbal. Baitullah tivera mais um filho. Um motreb ia cantar para os homens, e alguém tocaria um pandeiro. Seria servido chá, pão quente recém​-assado e sopa de shorwa com batata. Depois, o mulá Shekib molharia os dedos numa cuia de água adocicada e deixaria o bebê chupar. Pegaria sua pedra negra brilhante e a navalha de dois gumes, ergueria o pano que cobria o diafragma do garoto. Um ritual comum. A vida continuava em Shadbagh. " Khaleb Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"CERTA MANHÃ DAQUELE INVERNO, o pai pegou o machado e derrubou o carvalho gigante. Contou com a ajuda do filho do mulá Shekib, Baitullah, e de alguns outros homens. Ninguém tentou interferir. Abdullah só assistiu, junto a outros garotos. A primeira coisa que o pai fez foi desmontar o balanço. Subiu na árvore e cortou as cordas com uma faca. Depois, ele e os outros homens desferiram machadadas no grande tronco até o final da tarde, quando o velho carvalho finalmente tombou com um gemido grave. O pai disse a Abdullah que eles precisavam de lenha para o inverno. Mas suas machadadas na velha árvore foram tão violentas, sua mandíbula estava tão contraída, a expressão tão crispada, que Abdullah não conseguiu continuar olhando. " Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
" Eu gosto mais no final da primavera, depois das chuvas. O ar fica tão limpo. A primeira mostra do verão. A maneira como o sol bate nas montanhas. — Deu um sorriso abatido. — Vai ser bom ter crianças em casa. Um pouco de barulho, para variar. Um pouco de vida. " Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
: "— Hoje eu vi o encanto, a beleza, a insondável graça do rosto que estava procurando. — Sorriu. — Rumi. Já ouviu falar? " Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
 "O mundo do pai era inclemente. Nada de bom era obtido de graça. Nem amor. Todas as coisas tinham um preço. E, se você fosse pobre, o sofrimento era a moeda corrente. Abdullah observou o descamado repartido no cabelo da irmã, seu pulso fino pendurado ao lado da carroça, e sabia que, ao morrer, uma parte de sua mãe havia passado a Pari. Alguma coisa de sua devoção alegre, de inocência, de sua inquebrantável esperança. Pari era a única pessoa no mundo que jamais, jamais iria magoá​-lo. Em algumas ocasiões, Abdullah sentia que ela era sua única família. As cores do dia lentamente se dissolveram em cinza, e os distantes picos das montanhas se transformaram em silhuetas opacas de gigantes agachados. No início do dia, eles tinham passado por várias aldeias, a maioria tão remota e empoeirada quanto Shadbagh. Casas pequenas e quadradas feitas de barro cozido, às vezes erguidas na encosta de uma montanha e às vezes não, nuvens de fumaça subindo dos telhados. Linhas de varais, mulheres acocoradas perto de fogareiros. Poucos álamos, algumas galinhas, um punhado de vacas e cabras, e sempre uma mesquita. A última aldeia por que passaram ficava ao lado de um campo de papoulas, onde um velho que trabalhava nas vagens acenou para eles. Gritou alguma coisa que Abdullah não conseguiu ouvir. O pai retribuiu o aceno." Khaled Hossei- O Silêncio das  Montanhas
"Abdullah gostaria de poder amá​-la como tinha amado a mãe. A mãe que havia sangrado até morrer ao dar à luz Pari, três anos e meio atrás, quando Abdullah tinha sete anos. A mãe cujo rosto ele quase já havia esquecido, a mãe que segurava sua cabeça com as mãos, apertava​-o no peito e acariciava seu rosto todas as noites antes de dormir, cantando uma canção de ninar. Encontrei uma fadinha triste Na sombra de uma árvore de papel. Conheço uma fadinha triste Que foi soprada pelo vento da noite. Abdullah gostaria de amar sua nova mãeut da mesma maneira. E talvez, conjeturava, Parwana desejasse o mesmo em segredo, conseguir amar o enteado. Da forma como amava Iqbal, seu filho de um ano, cujo rosto ela sempre beijava, preocupando​-se com cada tosse ou espirro. Ou do modo como amava seu primeiro filho, Omar. Ela o adorava. Mas Omar havia morrido de frio no antepenúltimo inverno. Duas semanas depois de ter nascido. Parwana e o pai mal tinham acabado de dar um nome a ele. Foi um dos três bebês que aquele inverno brutal arrebatou de Shadbagh. Abdullah se lembrava de Parwana abraçada ao pequeno cadáver de Omar, enfaixado, de suas convulsões de pesar. Lembrava​-se do dia em que o enterraram na colina, um montinho no solo congelado, abaixo de um céu cor de cobre, o mulá Shekib dizendo suas preces, o vento soprando partículas de neve e gelo nos olhos de todos. " Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"Abdullah pensou: Ela é a sua mulher. Minha mãe, nós enterramos. Mas soube reprimir as palavras antes que fossem proferidas. — Então, tudo bem. Pode vir — concordou o pai. — Mas sem choradeira. Está me entendendo? — Sim. — Estou avisando. Não vou tolerar choradeira. Pari abriu um sorriso para Abdullah, que baixou os olhos para aqueles olhos róseos e pálidos, as bochechas redondas, e retribuiu o sorriso. Depois disso, Abdullah caminhou ao lado da carroça, que sacolejava no terreno rugoso do deserto, segurando a mão de Pari. Trocavam olhares felizes e furtivos, irmão e irmã, mas falavam pouco, com medo des azedar o humor do pai e estragar a boa sorte que tiveram. Durante longos trechos eles andaram sozinhos, só os três, com nada e ninguém à vista além de desfiladeiros avermelhados e grandes penhascos de arenito. O deserto se descortinava à frente, amplo e aberto, como se tivesse sido criado para eles e só para eles, o ar imóvel, morno e ardente, o céu alto e azul. Pedras cintilavam nas rachaduras do solo arenoso. Os únicos sons que Abdullah ouvia eram sua própria respiração e o rangido rítmico das rodas enquanto o pai puxava a carrocinha vermelha em direção ao norte." Khaled  Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"Um pouco mais tarde, o pai atirou uma pedra nele, do mesmo jeito que as crianças de Shadbagh faziam com o cachorro de Pari, Shuja — só que eles queriam acertar Shuja para machucar. A pedra do pai caiu a poucos metros de Abdullah, inofensiva. Ele parou, mas quando o pai e Pari começaram a andar outra vez, Abdullah continuou a segui-los. Finalmente, com o sol já além do zênite, o pai parou outra vez. Voltou até onde estava Abdullah, pareceu reconsiderar e fez um gesto com a mão. — Você não vai desistir — falou" Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas
"E posso dizer também que, em algumas noites, sem nenhuma razão específica, Baba Ayub não conseguia dormir. Apesar de agora estar muito velho, ainda podia andar com as próprias pernas, desde que usasse uma bengala. E assim, nessas noites insones, ele se esgueirava da cama sem acordar a mulher, pegava a bengala e saía de casa. Andava pela escuridão, a bengala tateando à frente, a brisa da noite fustigando seu rosto. Havia uma pedra achatada na orla de seu terreno, onde ele se sentava. Em geral, permanecia ali por uma hora ou mais, olhando as estrelas, as nuvens flutuando perto da lua. Pensava em sua longa vida, e agradecia por toda a generosidade e alegria que lhe haviam sido proporcionadas. Querer mais, desejar ainda mais, ele sabia, seria mesquinharia. Suspirava com prazer e ouvia o vento descendo das montanhas, os pios das aves noturnas." Khaled Hosseini - O Silêncio das Montanhas.
"Agradeço. O dev arreganhou os dentes. Posso perguntar que mal cometi contra você para desejar minha morte? — Você levou o meu filho mais novo — respondeu Baba Ayub. — Ele era a coisa mais preciosa do mundo para mim. O dev grunhiu e levou um dedo ao queixo. Eu já tirei muitos filhos de muitos pais, falou. Baba Ayub sacou a foice, com raiva. — Então, eu vou me vingar por eles também. Devo dizer que sua coragem me desperta uma onda de admiração. — Você não sabe nada de coragem — disse Baba Ayub. — Para ter coragem, é preciso haver algo em risco. Eu vim aqui sem nada a perder. Você tem sua vida a perder, disse o dev. — Você já tirou isso de mim. O dev rosnou outra vez e examinou Baba Ayub, pensativo. Depois de um tempo, falou: Muito bem, então. Vou aceitar o seu desafio. Mas antes vou pedir que me acompanhe. — Seja rápido — disse Baba Ayub. — Eu estou sem paciência. Mas o dev já se encaminhava a um corredor gigantesco, e Baba Ayub não teve escolha, a não ser segui​-lo. Acompanhou o dev por um labirinto de corredores, com tetos que quase roçavam as nuvens, todos apoiados em enormes colunas. Passaram por muitas escadas e aposentos, grandes o suficiente para conter toda Maidan Sabz. Andaram dessa maneira até que afinal o dev conduziu Baba Ayub a um salão enorme, com uma cortina na parede do fundo. Chegue mais perto, gesticulou. Baba Ayub ficou ao lado do dev. O dev abriu as cortinas. Atrás havia uma janela de vidro. Pela janela, Baba Ayub viu um imenso jardim. Fileiras de ciprestes rodeavam o jardim, com canteiros cheios de flores de todas as cores. Havia piscinas feitas de azulejos azuis, terraços de mármore, fontes de água rumorejante à sombra de árvores de romã. Nem em três vidas Baba Ayub poderia ter imaginado um lugar tão lindo. Mas o que realmente fez com que caísse de joelhos foi a imagem de crianças correndo e brincando felizes pelo jardim. Elas corriam umas atrás das outras pelos caminhos e ao redor das árvores. Brincavam de esconde​-esconde atrás das sebes. O olhar de Baba Ayub procurou entre as crianças e, afinal, achou o que estava procurando. Lá estava ele! Seu filho, Qais, vivo, e mais do que bem. Tinha
aumentado em altura, e o cabelo estava mais longo do que Baba Ayub recordava. Usava uma linda camisa branca por cima de calças bonitas. Ria com alegria correndo atrás de dois companheiros. — Qais — murmurou Baba Ayub, a respiração embaçando o vidro. Começou a gritar o nome do filho. Ele não pode ouvir você, disse o dev. Nem ver." Khaled Hosseini- O   Silêncio das Montanhas
" Os filhos restantes tiveram de assumir seu trabalho, pois todos os dias Baba Ayub não fazia nada além de se postar junto à plantação, uma figura triste e solitária olhando na direção das montanhas. Parou de falar com os aldeões, pois acreditava que eles cochichavam coisas às suas costas. Diziam que era um covarde por ter dado o filho de bom grado. Que não era um bom pai. Um verdadeiro pai teria lutado contra o dev. Teria morrido defendendo a família. Uma noite ele mencionou isso à esposa. " Khaled Hosseini - O Silêncio das Montanhas
"Ainda assim, Baba estava entre os mais afortunados, pois tinha uma família que prezava acima de todas as coisas. Amava a esposa e nunca erguia a voz para ela, muito menos a mão. Valorizava seus conselhos e sentia um prazer genuíno em sua companhia. Quanto a filhos, foi abençoado com tantos quanto os dedos de uma mão, três filhos e duas filhas, e amava muito a todos eles. As filhas eram diligentes, amáveis e de bom caráter e reputação. Aos filhos, ele já tinha ensinado o valor da honestidade, da coragem, da amizade e do trabalho árduo sem queixas. Eles lhe obedeciam como os bons filhos devem obedecer, e ajudavam o pai nas colheitas. Embora amasse a todos os filhos, Baba Ayub tinha uma preferência secreta e especial por um deles, o mais jovem, Qais, que estava com três anos de idade. Qais era um garotinho de olhos azul​-escuros. Encantava qualquer um que o conhecesse com sua risada maliciosa. Era também um desses garotos tão cheios de energia que chegava a drenar a energia dos outros. Quando aprendeu a andar, ficou tão maravilhado que andava o dia inteiro, enquanto estava acordado, e depois, de forma preocupante, até à noite, durante o sono. Saía sonambulando da casa de taipa da família para vagar sob a luz do luar. Era natural que seus pais se preocupassem. E se ele caísse num poço, ou se perdesse, ou, pior de tudo, se fosse atacado por uma das criaturas à espreita nas planícies à noite? Tentaram diversos remédios, mas nenhum funcionou. No fim, a solução que Baba Ayub encontrou foi simples, como costumam ser as melhores soluções: retirou a sineta de uma das cabras e pendurou no pescoço de Qais" Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas.
"Era uma vez, nos tempos em que devs, jinis e gigantes vagavam pela terra, um fazendeiro chamado Baba Ayub, que morava com a família numa pequena aldeia chamada Maidan Sabz. Como tinha uma família grande para alimentar, Baba Ayub via seus dias ser consumidos por trabalho árduo. Todos os dias, ele trabalhava do amanhecer ao pôr do sol, arando o campo, afofando a terra e cuidando de suas poucas árvores de pistache. A qualquer momento do dia, podia ser visto na lavoura, inclinado para a frente, as costas curvas como a foice que empunhava o dia inteiro. Suas mãos eram sempre calosas e sangravam com frequência, e todas as noites o sono o raptava assim que encostava a cabeça no travesseiro. " Khaled Hosseini- O Silêncio  das Montanhas
"Além das noções de malfeito e benfeito, existe uma ravina. Encontro você lá.
JELALUDDIN RUMI, século XIII"

Khaled Hosseini- O Silêncio das Montanhas

O Silêncio das Montanhas khaled Hosseine


quinta-feira, 30 de maio de 2013

"Descei às profundezas do palácio afundado... pois lá, na escuridão, espreita o monstro ctônico... Ela está apontando o caminho, compreendeu ele, saindo em disparada pela passarela. Brüder mal conseguia acompanhá-lo enquanto Langdon ziguezagueava rumo à escuridão, seguindo as placas da Medusa. Por fim, o professor chegou a uma pequena plataforma de observação junto à base da parede mais à direita da cisterna, depois da qual não havia como prosseguir. Foi ali que deparou com uma incrível visão. Um gigantesco bloco de mármore esculpido erguia-se de dentro d’água: a cabeça da Medusa, com as cobras se contorcendo em meio aos cabelos. O fato de a cabeça estar ao contrário sobre o pescoço a tornava ainda mais bizarra. Ela está invertida como as almas condenadas, entendeu Langdon, pensando no Mapa do Inferno de Botticelli e nos pecadores pintados no Malebolge. Brüder chegou ofegante ao seu lado junto ao parapeito e encarou a cabeça invertida da Medusa com uma expressão atônita. Langdon desconfiava de que aquela cabeça esculpida, que agora fazia as vezes de plinto e sustentava uma das colunas, devia ter sido saqueada de algum outro lugar e usada ali como material de construção barato. Sem dúvida estava invertida pela superstição de que isso privava a Medusa de seus poderes maléficos. Mesmo assim, ele não foi capaz de reprimir a enxurrada de pensamentos apavorantes que o assaltou. O desfecho do Inferno de Dante. O centro da Terra, onde a gravidade se inverte. A descida passa a ser subida. Sentindo uma premonição sinistra arrepiar sua pele, Langdon estreitou os olhos em direção à névoa avermelhada que rodeava a cabeça esculpida. A maior parte dos cabelos infestados de cobras da Medusa estava submersa, mas seus olhos se encontravam acima da superfície, virados para a esquerda, fitando a margem oposta da lagoa. Tomado pelo medo, ele se inclinou por sobre o parapeito e virou a cabeça para acompanhar o olhar da estátua rumo ao conhecido canto vazio do palácio afundado. Precisou apenas de um segundo para entender. Era ali. Aquele era o marco zero de Zobrist." Dan Brown - Inferno
"Eu sou a sua salvação. Eu sou a Sombra.
Não fazer nada é o mesmo que acolher o Inferno de Dante... amontoados e famintos, chafurdando em Pecado. Por isso tive coragem de tomar uma atitude. Alguns se encolherão de horror, mas toda salvação tem seu preço. Um dia o mundo irá entender a beleza do meu sacrifício.
Eu deixei o futuro em suas delicadas mãos. Meu trabalho aqui embaixo acabou. Chegou minha hora de voltar à superfície... e vislumbrar novamente as estrelas." Dan Brown-  Inferno
"Eu sou a Sombra. Fadado ao subterrâneo, devo falar ao mundo das profundezas da terra, exilado nesta caverna sombria em que as águas rubras de sangue se acumulam na lagoa que não reflete as estrelas. Mas este é o meu paraíso... o útero perfeito para o meu frágil rebento. Inferno.
Eu criei uma obra-prima de salvação. Ainda assim, meus esforços foram retribuídos não com trombetas e coroas de louros... mas com ameaças de morte. Não temo a morte... pois é ela que transforma visionários em mártires... e converte ideias nobres em movimentos poderosos. Jesus. Sócrates. Martin Luther King. Em breve me juntarei a eles. A obra-prima por mim concebida é uma criação do próprio Deus... um presente Daquele que me imbuiu do intelecto, das ferramentas e da coragem necessários para forjar tal criação. Agora o dia se aproxima. Inferno repousa logo abaixo de mim, preparando-se para irromper de seu útero aquático sob o olhar atento do monstro ctônico e de todas as suas Fúrias. Apesar da virtude dos meus feitos, assim como você, não desconheço o Pecado. Até mesmo eu carrego a culpa do mais tenebroso dos sete – a tentação solitária da qual tão poucos conseguem se proteger. Soberba. O próprio fato de gravar esta mensagem me fez sucumbir à atração instigante da Soberba... ansioso por garantir que o mundo conhecesse o meu trabalho. E por que não? A humanidade precisa conhecer a fonte de sua salvação... o nome daquele que selou para sempre os portões escancarados do Inferno! A cada hora que passa, o desfecho se torna mais certo. A matemática – tão implacável quanto a lei da gravidade – não admite negociação. O mesmo exponencial florescer de vida que quase extinguiu a Humanidade será também a sua redenção. A beleza de qualquer organismo vivo – seja ele bom ou mau – reside no fato de que este sempre seguirá a lei de Deus com singular determinação. Crescei e multiplicai-vos. Sendo assim, eu combato fogo... com fogo" Dan Brown- Inferno
"Langdon correu os olhos pelo poema mais uma vez e continuou a lê-lo em voz alta.
Ajoelhai-vos no dourado mouseion de santo saber, e levai ao chão vossa orelha, para ouvir o som da água que corre.
– Nunca ouvi falar em mouseion – disse Ferris. – É uma palavra antiga que significa um templo protegido pelas musas – explicou Langdon. – Na Grécia antiga, um mouseion era um lugar onde os homens esclarecidos se reuniam para trocar ideias e debater literatura, música e arte. O primeiro mouseion foi construído por Ptolomeu na Biblioteca de Alexandria, séculos antes do nascimento de Cristo, e depois disso centenas de outros surgiram mundo afora. " Dan Brown - Inferno
"– Não que eu saiba, mas o poema não usa a palavra “perigoso”, e sim “traiçoeiro”. Existe uma diferença, pelo menos no mundo de Dante. A traição é um pecado mortal... o pior de todos na verdade, punido no nono e último círculo do Inferno. Na definição de Dante, trair era o ato de violar a confiança de alguém que se amava. O exemplo histórico mais notório desse pecado era a traição a Jesus por Judas, ato que Dante julgava tão vil a ponto de banir Judas para o núcleo mais central do Inferno: uma região chamada Judeca, em homenagem a seu mais desprezível residente. " Dan Brown -Inferno
"Buscai o traiçoeiro doge de Veneza que de cavalos cortou cabeças... e os ossos arrancou de quem já não pode ver.
– Bem – disse Langdon –, não tenho certeza quanto a cavalos sem cabeça nem aos ossos de quem já não pode ver, mas parece que devemos localizar um doge específico. – Talvez o túmulo de um doge? – arriscou Sienna. – Ou uma estátua ou retrato? – rebateu Langdon. – Os doges não existem há séculos. Os doges de Veneza eram semelhantes aos duques de outras cidades-estados italianas. Mais de uma centena deles havia governado a cidade ao longo de mil anos, a partir de 697 d.C. Sua linhagem chegara ao fim no século XVIII com a conquista de Napoleão, mas a glória e o poder dos doges até hoje constituía um tema de intenso fascínio para os historiadores. – Como vocês já devem saber – falou Langdon –, as duas atrações turísticas mais populares de Veneza, o Palazzo Ducale, ou Palácio dos Doges, e a Basílica de São Marcos, foram construídas por e para esses governantes. Muitos deles estão sepultados lá mesmo." Dan Brown - Inferno
"Ó, vós, na possessão de tão robustos intelectos... Duvidava que no presente momento ele próprio se encaixasse nessa descrição. Mesmo assim, começou a trabalhar.
Ó, vós, na possessão de tão robustos intelectos, observai os ensinamentos que se escondem... sob o véu destes estranhos versos. – Como mencionei mais cedo – começou Langdon –, a primeira estrofe do poema de Zobrist foi tirada, verbatim, do Inferno de Dante... um alerta ao leitor de que esses versos têm um significado mais profundo. A alegórica obra de Dante era tão repleta de comentários velados sobre religião, política e filosofia que Langdon muitas vezes sugeria que seus alunos estudassem o poeta italiano mais ou menos como estudavam a Bíblia: lendo nas entrelinhas para tentarem desvendar os sentidos ocultos dos escritos. Dan Brown- Inferno
 "A primeira estrofe é de Dante, uma citação quase literal – falou. – Ó, vós, na possessão de tão
robustos intelectos... observai os ensinamentos que se escondem... sob o véu destes estranhos versos."
 "Langdon tornou a assentir, intrigado com o texto à sua frente. As águas rubras de sangue da lagoa que não reflete as estrelas? "
"Levai ao chão vossa orelha, para ouvir os sons da água que corre. "
"Descei às profundezas do palácio afundado... pois lá, na escuridão, espreita o monstro ctônico. – Robert? – indagou Sienna, ressabiada. – Monstro o quê? – Ctônico – respondeu Langdon. – É uma palavra de raiz grega. Significa “que vive debaixo da terra”.

Dan Brown- Inferno
"Langdon tornou a olhar e dessa vez viu a sombra indistinta de mais palavras despontando através do gesso-cré umedecido de ambos os lados da palavra possessão. Afobada, Sienna pegou o pano e recomeçou a esfregar em volta da palavra até outro trecho aparecer, escrito em uma curva suave. Ó, vós, na possessão de tão robustos intelectos Langdon deixou escapar um assobio baixo. – Ó, vós, na possessão de tão robustos intelectos... observai os ensinamentos que se escondem... sob o véu destes estranhos versos. Sienna o encarou. – Como é que é? – Essas palavras vêm de uma das estrofes mais conhecidas do Inferno de Dante – explicou Langdon, animado. – É quando o poeta instiga seus leitores mais inteligentes a buscarem os ensinamentos ocultos em seus versos enigmáticos"
Dan Brown - Inferno
"Canto XXV
Se porventura este poema sagrado, engendrado tanto na Terra como no Céu, e que tanto me exauriu por longos anos, puder vencer a crueldade que me afasta do leito sublime em que repousava, um cordeiro em meio aos lobos que ali guerreiam...
Então com outra voz, o cabelo já branco, poeta voltarei à fonte do meu batismo para lá revestir a coroa de louros; pois ali me foi apresentada a fé que ao reino de Deus as almas conduz, e pela qual por Pedro fui cingido."

Dan Brown- Inferno
"A única indicação de aquele ser de fato o local correto era uma pequeníssima placa – verdadeira antítese do banner vermelho-vivo do Museo Casa di Dante – anunciando, sem alarde, que aquela era a igreja de Dante e Beatriz. Quando Langdon e Sienna deixaram a rua, entrando no espaço fechado e escuro da igreja, o ar ficou mais frio e a música, mais alta. O interior era austero e simples, menor do que Langdon se lembrava. Havia apenas uns poucos turistas, conversando, escrevendo em diários, sentados em silêncio nos bancos para ouvir a música ou examinando o curioso acervo de obras de arte. Com exceção do retábulo de Neri di Bicci cujo tema era a Madona, quase todas as obras originais do santuário tinham sido substituídas por peças contemporâneas representando as duas celebridades que atraíam a maior parte dos visitantes àquela pequena capela: Dante e Beatriz."
Dan Brown- Inferno
"Numa extraordinária façanha de engenharia, Vasari aumentou substancialmente o pé-direito original para permitir que a luz natural entrasse por caixilhos envidraçados altos situados nos quatro cantos do salão, transformando o recinto num elegante showroom de alguns dos mais belos exemplos de arquitetura, escultura e pintura florentinas. A primeira coisa a atrair o olhar de Langdon naquela sala era sempre o chão, anúncio imediato de que aquele não era um lugar qualquer. O piso de pedra vermelha imitando madeira era entrecruzado por linhas negras, o que dava ao ambiente de cerca de 1.200 metros quadrados um ar de solidez, profundidade e equilíbrio. Langdon ergueu os olhos devagar até a extremidade oposta do salão, onde seis dinâmicas esculturas – Os trabalhos de Hércules – margeavam a parede qual uma falange de soldados. Fez questão de ignorar a difamada Hércules e Diomedes, em que dois corpos nus se engalfinhavam em um constrangedor espetáculo de luta livre que incluía uma criativa “chave de pinto” que sempre fazia Langdon se encolher. Muito mais agradável aos olhos era o deslumbrante Gênio da vitória, de Michelangelo, à direita, que dominava o nicho central da parede sul. Com seus quase 2,75 metros de altura, a escultura fora encomendada para o túmulo do ultraconservador papa Júlio II – Il Papa Terribile. Langdon sempre havia considerado isso irônico, dada a posição do Vaticano em relação à homossexualidade. A estátua representava Tommaso dei Cavalieri, o rapaz por quem Michelangelo fora apaixonado durante quase a vida inteira e para quem compusera mais de trezentos sonetos." Dan Brown - Inferno
"Não fazer nada é o mesmo que acolher o Inferno de Dante... amontoados e famintos, chafurdando em Pecado. Por isso tive coragem de tomar uma atitude.
Alguns se encolherão de horror, mas toda salvação tem seu preço. Um dia o mundo irá entender a beleza do meu sacrifício. Pois eu sou a sua Salvação. Eu sou a Sombra. Eu sou o portal que conduz à era Pós-humana." Dan Brown - Inferno
"O Inferno de Dante não é ficção... é uma profecia! Agonia extrema. Angústia torturante. Esse é o retrato do futuro. A humanidade, quando não controlada, funciona como uma praga, um câncer: nosso número se multiplica a cada geração até os confortos terrenos que um dia nutriram nossa virtude e fraternidade se reduzirem a nada, revelando os monstros que vivem dentro de nós quando somos obrigados a lutar até a morte para alimentar nossos filhos. É esse o Inferno de nove círculos de Dante. É isso que nos espera. Enquanto o futuro se aproxima de modo descontrolado, alimentado pela implacável matemática de Malthus, nós tentamos nos equilibrar à beira do primeiro círculo do Inferno... prestes a despencar mais depressa do que poderíamos imaginar"
Dan Brown - Inferno
"Il Corridoio Vasariano – o Corredor Vasari – foi projetado por Giorgio Vasari em 1564 a pedido do chefe da família Médici, o grão-duque Cosmo I, para servir como uma passagem segura entre sua residência no Palazzo Pitti e seus escritórios administrativos na margem oposta do rio Arno, no Palazzo Vecchio. Nos moldes do famoso Passetto da Cidade do Vaticano, o Corredor Vasari era uma passagem secreta no sentido mais puro do termo. Estendia-se por quase um quilômetro do canto leste dos Jardins de Boboli até o coração do velho palácio, depois de atravessar a Ponte Vecchio e de serpentear pela Galleria degli Uffizi. Hoje em dia, o Corredor Vasari ainda servia de porto seguro, não mais para aristocratas da família Médici, mas para obras de arte: com sua área aparentemente infinita de paredes seguras, o corredor abrigava inúmeros quadros raros – excedentes da famosa Galleria degli Uffizi." Dan Brown - Inferno
"– Não entendeu ainda?! – Langdon agora sorria. – Eu não estava dizendo very sorry, very sorry. Estava dizendo o nome do artista: Va... sari, Vasari!
Não é um pedido de desculpas, refletiu Langdon. É o nome de um artista. – Vasari – gaguejou Sienna, recuando um passo na trilha. – O artista que pintou um mural e escondeu nele as palavras cerca trova. Langdon não pôde deixar de sorrir. Vasari. Vasari. Além de lançar um raio de luz sobre a estranha situação em que se encontrava, a revelação também significava que ele não precisava mais se perguntar que coisa terrível teria feito para lamentar tanto. " Dan Brown - Inferno
 "Certo – Sienna apressou-se em dizer. – Catrova. Cer. – Isso. E, para reordenar as cartas, basta desfazer o corte e passar a parte de baixo para cima. As duas metades trocam de lugar. Sienna olhou para as letras. – Cer. Catrova. – Ela deu de ombros. Não parecia nem um pouco impressionada. – Ainda não significa nada... – Cer catrova – repetiu Langdon. Fez uma pausa e tornou a dizer as palavras, pronunciando-as de uma vez só. – Cercatrova. – Por fim, voltou a dizê-las com uma pausa no meio. – Cerca... trova. Sienna soltou um arquejo e ergueu os olhos para encará-lo. – Sim – confirmou ele com um sorriso. – Cerca trova.
As duas palavras em italiano cerca e trova significavam, literalmente, “busca” e “encontra”. Quando combinadas em uma só frase – cerca trova – eram um sinônimo do aforismo bíblico “Busca e encontrarás”. – As suas alucinações! – exclamou Sienna, mal conseguindo respirar. – A mulher de véu! Ficava mandando você buscar e encontrar! – Ela se levantou com um pulo. – Robert, você entende o que isso quer dizer? As palavras cerca trova já estavam no seu inconsciente! Está entendendo? Você deve ter decifrado essa expressão antes de chegar ao hospital! Provavelmente já tinha visto a imagem do projetor antes... só que não se lembrava! Ela tem razão, percebeu ele. Estava tão concentrado no código em si que a possibilidade de já ter feito tudo aquilo antes nem lhe passara pela cabeça. – Robert, você disse mais cedo que o Mappa apontava para um local específico na cidade velha. Mas ainda não entendi que local é esse. – Cerca trova não lhe diz nada? Ela deu de ombros. Langdon sorriu por dentro. Até que enfim, algo que Sienna não sabe. " Dan Brown - Inferno
 "Não tenho dúvidas de que entende que a superpopulação é uma questão de saúde pública. Mas temo que não compreenda que ela vai afetar a própria alma humana. Quando submetidos ao estresse da superpopulação, aqueles que nunca cogitaram roubar se tornarão ladrões para alimentar suas famílias. Aqueles que nunca cogitaram matar se tornarão assassinos para sustentar seus filhos. Todos os pecados mortais retratados por Dante começarão a vir à tona. Avareza, gula, deslealdade, assassinato, etc., todos se espalharão entre a humanidade, amplificados pelo fim de nossos confortos. Estamos enfrentando uma batalha pela própria alma do ser humano. – Sou bióloga. Salvo vidas, não almas. – Bem, posso lhe garantir que salvar vidas vai se tornar cada vez mais difícil nos anos que estão por vir. A superpopulação gera mais do que descontentamento espiritual. Há um trecho de Maquiavel... – Sim, eu conheço – disse ela, interrompendo-o para citar de memória o famoso trecho: – “Quando todas as províncias do mundo estiverem abarrotadas a ponto de seus habitantes não conseguirem subsistir onde estão nem migrar para outra parte... o mundo irá purificar a si mesmo.”
Dan Brown - Inferno
" A obra se tornou de tal forma um pilar da cultura italiana que o estilo literário de Dante foi considerado responsável pela própria codificação da língua italiana moderna. "
Dan Brown - Inferno
"INFERNO
Tendo à metade desta vida chegado, vi-me nas entranhas de uma floresta escura, pois o caminho reto perdido estava.
Na página em branco à esquerda, seu cliente havia escrito a seguinte dedicatória:
Meu caro amigo, obrigado por me ajudar a encontrar o caminho. O mundo também lhe agradece."
Dan Brown - Inferno
"A figura transtornada que chegou ao iate mal lembrava o homem equilibrado e bem-apessoado com quem o diretor fizera negócio no ano anterior. Seus olhos verdes, antes incisivos, tinham agora uma expressão alucinada. Ele parecia quase... doente. O que aconteceu com ele? O que ele vem fazendo? O diretor conduziu o homem inquieto até seu escritório. – O demônio de cabelos cor de prata – gaguejou. – Ela está se aproximando a cada dia." Dan Brown- Inferno
"Ela e Langdon se encolheram e esperaram, prendendo a respiração. A van seguiu em frente, sem hesitar. Aparentemente eles não tinham sido vistos. Quando o veículo passou, contudo, Langdon vislumbrou uma pessoa lá dentro. No banco de trás, uma mulher mais velha, atraente, estava sentada entre dois soldados, como se fosse uma refém. Tinha as pálpebras caídas e a cabeça mole, como se estivesse delirando ou talvez drogada. Usava um amuleto no pescoço e tinha longos cabelos cor de prata cujos cachos caíam em cascata. Por um instante, Langdon sentiu um nó na garganta e teve a impressão de estar vendo um fantasma. Aquela era a mulher das suas visões."
Dan Brown - Inferno
"A visão que Dante tinha do Inferno representada em cores vivas, pensou Langdon. Louvado como uma das maiores obras da literatura mundial, o Inferno era o primeiro dos três livros que compunham A Divina Comédia, de Dante Alighieri – um poema épico de 14.233 versos que descreve sua brutal descida ao mundo inferior, a jornada pelo Purgatório e, por fim, a chegada ao Paraíso. Das três partes da Comédia – Inferno, Purgatório e Paraíso –, o Inferno é de longe a mais lida e a mais memorável. Composto por Dante Alighieri no início do século XIV, o Inferno redefiniu a percepção medieval da danação. Antes dele, a ideia do mundo inferior nunca havia fascinado as massas de forma tão arrebatadora. Da noite para o dia, a obra de Dante cristalizou esse conceito abstrato em uma visão nítida e aterrorizante – visceral, palpável, inesquecível. Como era de esperar, após a publicação do poema, houve um enorme aumento no número de fiéis da Igreja Católica, graças aos pecadores aterrorizados que buscavam evitar a versão atualizada do Inferno imaginada por Dante. Retratada ali por Botticelli, essa horrenda visão dantesca tinha a forma de um funil de sofrimento subterrâneo: um desgraçado submundo composto de fogo, enxofre, esgoto e monstros, com Satanás em pessoa à espera lá no centro. O fosso tinha nove níveis distintos, os nove círculos do Inferno, nos quais os condenados eram lançados de acordo com a gravidade dos seus pecados. Perto do topo, os luxuriosos, ou “malfeitores carnais”, eram fustigados por um vendaval eterno, símbolo de sua incapacidade de controlar o próprio desejo. Abaixo deles, os glutões eram obrigados a ficar deitados de bruços em um lodaçal pútrido de imundície, com a boca cheia do produto de seus excessos. Ainda mais fundo, os hereges eram confinados em caixões flamejantes, condenados ao fogo eterno. E assim por diante... cada vez pior conforme se descia. Nos sete séculos que se seguiram à sua publicação, a duradoura visão dantesca do Inferno inspirou tributos, traduções e variações por parte de algumas das mentes mais criativas da história. Longfellow, Chaucer, Marx, Milton, Balzac, Borges e até vários papas escreveram obras baseadas no Inferno. Monteverdi, Liszt, Wagner, Tchaikovski e Puccini criaram peças musicais baseadas na obra de Dante, assim como uma das compositoras contemporâneas prediletas de Langdon: Loreena McKennitt. Até mesmo o mundo moderno dos videogames e aplicativos para tablets oferece diversos produtos relacionados ao autor da Divina Comédia. "
Dan Brown- Inferno
"O Mapa do Inferno de Botticelli era na verdade um tributo a uma obra literária do século XIV que havia se tornado um dos textos mais célebres da história... uma visão notoriamente macabra do Inferno cuja influência se fazia sentir até hoje. O Inferno de Dante." Dan Brown - Inferno
"Ao seu lado, Sienna cobriu a boca e deu um passo titubeante à frente, hipnotizada pelo que via. A cena que se projetava do osso entalhado era uma pintura a óleo, um retrato macabro do sofrimento humano: milhares de almas suportando torturas impiedosas em diversos estágios do Inferno. O mundo inferior era representado por um corte transversal da Terra, um cavernoso poço em forma de funil, de profundezas insondáveis. Esse fosso infernal era dividido em camadas descendentes, povoadas por toda a sorte de pecadores atormentados, sua agonia ficando mais intensa a cada nível. Langdon reconheceu a imagem na mesma hora. A obra-prima à sua frente – La Mappa dell’Inferno – fora pintada por um dos gigantes da Renascença Italiana, Sandro Botticelli. Complexo diagrama do mundo inferior, aquele Mapa do Inferno era uma das visões mais aterrorizantes da vida após a morte já criadas. Escuro, sinistro e apavorante, o quadro até hoje causa espanto em quem o vê. Diferente de suas obras vibrantes e coloridas, como Primavera e O nascimento de Vênus, no Mapa do Inferno Botticelli usou uma deprimente paleta de tons de vermelho, sépia e marrom. " Dan Brown - Inferno
"– Saligia representa os pecados coletivos da humanidade, que, de acordo com a doutrinação religiosa medieval... – Foram o motivo pelo qual Deus puniu o mundo com a Peste Negra – disse Sienna, completando seu pensamento. " Dan Brown - Inferno
"– Um tema recorrente – respondeu Langdon em tom sério, indicando uma das gravuras no selo. – Está vendo este demônio de três cabeças devorador de homens? É uma imagem comum na Idade Média, um ícone associado à Peste Negra. As três bocas vorazes simbolizam a eficiência com que a peste consumia a população. " Dan Brown - Inferno
 "Saligia? Langdon assentiu, sentindo um arrepio ao ouvir a palavra ser pronunciada. – É uma expressão mnemônica latina inventada pelo Vaticano na Idade Média para lembrar aos cristãos os sete pecados capitais. Saligia é um acrônimo de superbia, avaritia, luxuria, invidia, gula, ira e acedia.
Dan Brown - Inferno
"Com a voz abafada, a sombra disforme voltou a falar:
Esta é a nova Idade das Trevas. Séculos atrás, a Europa estava mergulhada em sua própria agonia – a população amontoada, faminta, chafurdando em pecado e desesperança. Era como uma floresta congestionada, sufocada pela matéria em decomposição, esperando que Deus lançasse seu raio – aquela fagulha que finalmente acenderia a chama que iria assolar a terra e desbastar a vegetação excedente e podre, devolvendo a luz do sol às raízes saudáveis. Expurgar é a Ordem Natural de Deus. Perguntem-se: o que veio depois da Peste Negra? Todos sabemos a resposta. A Renascença. Renascimento. Tem sido sempre assim. A morte é seguida pelo nascimento. Para alcançar o Paraíso, o homem deve atravessar o Inferno. Foi esse o ensinamento do mestre. E aquela ignorante de cabelos prateados ainda ousa me chamar de monstro? Será que ela ainda não compreende a matemática do futuro? Os horrores que ela trará? Eu sou a Sombra. Eu sou a sua salvação. E aqui estou, nas profundezas desta caverna, fitando a lagoa que não reflete as estrelas. Aqui, neste palácio afundado, o Inferno fumega sob as águas. Logo explodirá em chamas. E, quando isso acontecer, nada na Terra será capaz de detê-lo." Dan Brown - Inferno
"Eu sou a Sombra. Se vocês estão assistindo a este vídeo, então minha alma finalmente descansou. Condenado ao subterrâneo, devo falar ao mundo das profundezas da terra, exilado nesta caverna sombria onde as águas rubras de sangue se acumulam na lagoa que não reflete as estrelas. Mas este é o meu Paraíso... o útero perfeito para o meu frágil rebento. Inferno. Em breve vocês saberão o que deixei para trás. No entanto, mesmo aqui, posso sentir os passos das almas ignorantes que me perseguem... e que tentarão impedir meus atos, sem deixar que nada as detenha. “Perdoe-as”, vocês talvez digam, “pois elas não sabem o que fazem”. Mas chega um momento na história em que o pecado da ignorância não pode mais ser perdoado... um momento em que só o conhecimento tem o poder da absolvição. Com a consciência limpa, concedi a todos vocês a dádiva da esperança, da salvação, do porvir. Mesmo assim houve quem me perseguisse como a um cão, impulsionado pela crença hipócrita de que sou louco. Vejam aquela beldade de cabelos prateados que ousa me chamar de monstro! Como o clero cego que defendeu a morte de Copérnico, com escárnio ela me rotula de demônio, apavorada que eu tenha vislumbrado a Verdade. Mas eu não sou um profeta. Eu sou a sua salvação. Eu sou a Sombra." Dan Brown - Inferno
"Durante seus dez anos de Consórcio, Knowlton havia executado toda sorte de tarefas estranhas que sabia que estavam em algum ponto entre o desonesto e o ilegal. Trabalhar dentro de uma zona moral dúbia era normal nessa organização, cujo único preceito ético inabalável era não medir esforços para manter uma promessa feita a um cliente. Nós cumprimos o combinado. Sem perguntas. Custe o que custar." Dan Brown - Inferno
"Fazer o upload do vídeo de forma anônima seria simples, mas, de acordo com o protocolo para todos os arquivos digitais, o cronograma previa que ele fosse revisado hoje – 24 horas antes do envio –, de modo a garantir que o Consórcio tivesse tempo suficiente para executar a decriptação, a compilação ou tomar qualquer outra providência necessária antes de fazer o upload na hora marcada. Não deixar nada ao acaso" Dan Brown- Inferno
"Langdon obedeceu. Lá fora, lápides fantasmagóricas cruzavam rapidamente a escuridão. De certa forma, parecia adequado que estivessem passando por um cemitério. Langdon sentiu os dedos da médica pegarem o cateter com cuidado e, então, sem aviso, ela o arrancou. Uma dor lancinante subiu como um raio direto para a sua cabeça. Ele sentiu os olhos revirarem e foi engolido pela escuridão".
Dan Brown - Inferno
 "Tudo o que fazia era orquestrado de modo a erradicar a incerteza e impossibilitar o acaso. Controle era a sua especialidade – prever cada possibilidade, antecipar qualquer reação e moldar a realidade a fim de alcançar o resultado desejado. Ele tinha um histórico impecável de sucessos e confidencialidade que lhe garantia uma clientela impressionante: bilionários, políticos, xeques e até governos inteiros. " Dan Brown - Inferno
"As decisões do passado são os arquitetos do presente. "
Dan Brown- Inferno
"Queridíssimo Deus, rogo-lhe que o mundo se lembre do meu nome não como um pecador monstruoso, mas como o salvador glorioso que o Senhor sabe que na verdade sou. Rogo que a humanidade entenda o presente que deixo. Meu presente é o futuro. Meu presente é a salvação. Meu presente é o Inferno. Com essas palavras, sussurro amém... e dou o último passo para mergulhar no abismo" Dan Brown- Inferno
"Neste exato momento, ela cresce... à espera... fervilhando sob as águas rubras de sangue da lagoa que não reflete as estrelas. " Dan Brown - Inferno
"Ó, ignorantes obstinados! Por acaso não conseguem ver o futuro? Não conseguem entender o esplendor da minha criação? Como ela é necessária?"
Dan Brown- Inferno
. "Seja o meu guia, caro Virgílio, enquanto atravesso o vazio."
Dan Brown- Inferno
"Eu sou a Sombra. Pela cidade atormentada, eu fujo. Pela eterna desolação, corro para escapar. Pelas margens do rio Arno, sigo desabalado, ofegante... Viro à esquerda na Via dei Castellani e sigo em direção ao norte, abrigando-me nas sombras da Galleria degli Uffizi. Mesmo assim eles continuam a me perseguir. Então, à medida que me caçam com uma determinação implacável, o som de seus passos vai ficando cada vez mais alto. Há anos sou perseguido por eles. Sua persistência me manteve na clandestinidade e forçou-me a viver no Purgatório, agindo embaixo da terra qual um monstro ctônico. Eu sou a Sombra. Aqui, na superfície, ergo o olhar para o norte, mas não consigo encontrar um caminho direto para a salvação, pois os montes Apeninos bloqueiam os primeiros raios de sol da alvorada. Passo atrás do palazzo, com sua torre ornada de ameias e seu relógio de um ponteiro só... Em ziguezague, avanço por entre os comerciantes madrugadores na Piazza di San Firenze. Quando falam com suas vozes roucas, sinto seu hálito, que recende a lampredotto e azeitonas assadas. Atravessando em frente ao Bargello, dobro novamente à esquerda em direção à torre da Badia e me jogo com força contra o portão de ferro ao pé da escada. Aqui, toda e qualquer hesitação deve ser abandonada. Giro a maçaneta e entro no corredor. Sei que não haverá volta. Instigo minhas pernas pesadas como chumbo a galgarem a escadaria estreita, com seus degraus de mármore esburacados e gastos subindo em espiral rumo ao céu. As vozes ecoam lá de baixo. Suplicantes. Eles estão atrás de mim, irredutíveis, cada vez mais perto. Não entendem o que está por vir... tampouco o que fiz por eles! Terra ingrata! Enquanto subo, as visões me vêm com toda a força... os corpos libidinosos se contorcendo sob a chuva de fogo, as almas dos glutões flutuando em excremento, os traidores infames congelados nas garras gélidas de Satanás. Venço os últimos degraus e chego ao topo cambaleando, à beira da morte; saio para o ar úmido da manhã. Corro até o muro que se ergue à altura da minha cabeça e espio pelas frestas. Lá embaixo estende-se a cidade abençoada que tornei meu santuário contra aqueles que me exilaram. As vozes me chamam, aproximando-se por trás. – O que você fez é uma loucura! Loucura gera loucura. – Pelo amor de Deus – gritam eles –, diga-nos onde a escondeu! É exatamente pelo amor de Deus que não direi. Aqui estou, encurralado, as costas contra a pedra fria. Eles olham no fundo dos meus olhos verdes e límpidos, e seus rostos ficam carregados: sua expressão, antes persuasiva, agora é ameaçadora. – Você sabe que temos nossos métodos. Podemos forçá-lo a nos contar onde está. Por isso subi metade do caminho até o Céu".
Dan Brown-Inferno
F A T O S
 Todas as referências históricas e obras de arte, literatura e ciência citadas neste romance são reais. O Consórcio é uma organização secreta com escritórios em sete países. Seu nome foi modificado por questões de segurança e privacidade. Inferno é o mundo inferior que Dante Alighieri retrata na primeira parte do poema épico A Divina Comédia como um reino de estrutura complexa povoado por entidades conhecidas como “sombras” – almas desencarnadas presas entre a vida e a morte.
"Os lugares mais sombrios do Inferno são reservados àqueles que se mantiveram neutros em tempos de crise moral."
Dan Brown- Inferno

Excelente Leitura!

Inferno de Dan Bronw


sábado, 25 de maio de 2013

"A terceira fase: após a libertação   Voltamo-nos agora para a terceira parte da psicologia do campo de concentração - a psicologia do prisioneiro recém-liberto.   Dada a natureza do assunto, a descrição da experiência de libertação já não poderá ser impessoal. Começamos por aquele ponto em nosso relato em que após dias da mais intensa expectativa, tremulava certa manhã a bandeira branca no portão do campo. Esta altíssima tensão anímica foi sucedida por uma distensão interior total. Quem pensa que nossa alegria foi geral está redondamente enganado. O que realmente aconteceu?   A passos lentos os companheiros se arrastam em direção ao portão do campo. Mal e mal as pernas os sustentam. Olham timidamente em volta, cada qual encara o outro com uma pergunta nos olhos. Dão os primeiros passos temerosos para fora do campo de concentração. Desta feita não se ouve nenhuma voz de comando, ninguém tenta esquivar-se de um soco ou pontapé. Ah não, desta vez os guardas oferecem cigarros. A gente não os reconhece de saída, pois entrementes se apressaram em vestir-se à paisana. Vamos andando devagar, seguindo pela estrada de acesso. Minhas pernas já começam a doer ameaçando falhar em sua função. Vamos nos arrastando, queremos ver pela primeira vez os arredores do campo de concentração, ou melhor, vê-los pela primeira vez como pessoa livre. Apreciamos a natureza e entramos para a liberdade. "Para a liberdade", vou dizendo, e o repito várias vezes em pensamento; mas simplesmente não se consegue apreendê-lo. Em tantos anos de sonhos e de saudades, o termo liberdade ficara muito gasto. Seu conceito perdera os contornos. Confrontado com a realidade, ele se confunde. A nova realidade ainda não consegue penetrar direito no consciente. Simplesmente não se consegue apreendê-la ainda. Chega-se a um campo. Nele se vêem flores. Toma-se conhecimento de tudo isso, mas não se chega a "tomar sentimento". A primeira centelha de alegria salta ao se perceber um galo de vistosa cauda multicor. Mas fica nisto, nesta centelha de alegria, e ainda não se participa do mundo. A gente se senta debaixo de um castanheiro sobre um pequeno banco; só Deus sabe a expressão do rosto naquela hora. Em todo caso: o mundo continua sem causar impressão.   À noitinha, quando voltam a se reunir os companheiros em seu velho barracão, um chega para o outro e lhe pergunta às escondidas: "Diga-me uma coisa: você chegou a ficar contente hoje?" O outro responde: "Para ser franco, não!" E fica envergonhado, porque não sabe que com todos é assim. Literalmente
desaprendemos o sentimento de alegria. Será necessário aprender de novo a alegrar-se.   Sob o ponto de vista psicológico, pode-se chamar de verdadeira despersonalização aquilo que os companheiros libertos experimentaram. Tudo parece irreal e improvável. Tudo parece apenas um sonho. Ainda não se consegue acreditá-lo. Foram demais, muito demais as vezes em que o sonho nos iludiu nesses últimos anos. Quantas vezes sonhamos que viria este dia em que nos poderíamos movimentar livremente? Quantas vezes sonhamos estar chegando em casa para abraçar a esposa, saudar os amigos, sentar com eles à mesa e começar a contar tudo aquilo que se passou durante estes anos? Quantas vezes antecipamos em sonhos esse dia de reencontros - e agora, realmente teria chegado este momento? Sempre havia três silvos estridentes ferindo o ouvido, dando o comando de "levantar", arrancando a gente do sonho, da liberdade, e como mero sonho se revelava pela enésima vez. E agora deveríamos acreditar, de uma hora para a outra? Agora essa liberdade seria realidade verdadeira?   Mas é isto mesmo, um dia. O corpo não tem tantas inibições como a alma. A partir do primeiro instante em que se lhe abre a possibilidade, ele aproveita a realidade e deita a mão nela, literalmente: a gente come a não poder mais, horas a fio, dias a fio, a metade da noite. Incrível o quanto se consegue comer. Um ou outro recluso liberto é convidado por agricultores amáveis nas proximidades do campo, e então ele come, e toma café, e solta sua língua, e começa a contar coisas, horas e horas a fio. Descarrega-se a pressão que estava sobre ele durante tantos anos. A forma de contar da impressão de que a pessoa em questão estaria sob uma espécie de compulsão anímica, tanta é a ânsia de contar, a necessidade de falar. (Pude observar este fenômeno também em pessoas que mesmo por pouco tempo estiveram sob pressão muito grande, como por exemplo, em interrogatórios da Gestapo.)   Passam-se dias, muitos dias, até que se solte não somente a língua, mas também algo dentro da gente. De repente o sentimento abre uma brecha naquela estranha barreira repressiva que o recalcara. E então, dias após a libertação, vais andando pelo campo livre, atravessando campinas floridas, rumo a um lugarejo nos arredores do campo de concentração; cotovias se alçam para as alturas e ouves o seu canto de alegria que ressoa no alto do ar livre. Em toda a volta não se enxerga vivalma. O que te cerca é campo aberto, a terra, o céu, o regozijo das cotovias e o espaço livre; nada mais. Interrompes tua caminhada neste espaço livre, para, olhar ao redor e olhas para o alto - e te prostras de joelhos. Neste momento não sabes muito de ti mesmo nem muito sobre o mundo. Dentro de ti apenas ouves as palavras, e sempre as mesmas palavras: "Na angústia gritei para o Senhor, e ele me respondeu no espaço livre." - Quanto tempo ficaste ali ajoelhado? Quantas vezes repetiste aquelas palavras? A lembrança já não sabe dizer. . . Mas naquele dia, naquela hora, começou tua nova vida - isto sabes. E é passo a passo, não de outro modo, que entras nesta nova vida, tornas a ser homem. "  Viktor  E Frankl - Um Psicólogo no Campo de Concentração
"Algo está esperando   As tentativas embrionárias de uma psicoterapia ou psicahigiene no campo de concentração foram de natureza individual e coletiva. As tentativas psicoterapêuticas individuais foram muitas vezes um "tratamento" urgente para salvar a vida. Afinal esses esforços se destinavam sobretudo à prevenção de suicídios. Para os casos em que se concretizara a tentativa de suicídio havia uma proibição rigorosíssima de salvar a pessoa em questão. Assim era oficialmente proibido, por exemplo, "soltar" companheiros que alguém encontrasse enforcados. Tanto mais se impunha a necessidade de tomar medidas preventivas. Lembro de dois "casos". Apresento-os não só por servirem de paradigmas para a aplicação prática das reflexões acima
expostas, mas por revelarem também um notável paralelismo. Trata-se de dois homens que em conversas haviam manifestado intenções de suicídio. Ambos alegaram da maneira típica que "nada mais tinham a esperar da vida". Importava mostrar a ambos que a vida esperava algo deles, e algo na vida, no futuro, estaria esperando por eles. E de fato revelou-se que por um deles havia um ser humano esperando: seu filho, ao qual idolatrava, "esperava" pelo pai no exterior. Pelo outro "esperava" não uma pessoa, mas um objeto: sua obra. O homem era cientista e publicara uma série de livros sobre determinado tema, a qual não estava concluída e aguardava a sua conclusão. E para esta obra este homem era insubstituível, não podia ser trocado por outro. Mas ele não era nem mais nem menos insubstituível que aquele outro que, no amor da criança, era único e não podia ser trocado. Aquela unicidade e exclusividade que caracteriza cada pessoa humana e dá sentido à existência do indivíduo, faz-se valer tanto em relação a uma obra ou uma conquista criativa, como também em relação a outra pessoa e ao amor da mesma. Esse fato de cada indivíduo não poder ser substituído nem representado é, no entanto, aquilo que, levado ao nível da consciência, ilumina em toda a sua grandeza a responsabilidade do ser humano por sua vida e pela continuidade da vida. A pessoa que se deu conta dessa responsabilidade em relação à obra que por ela espera ou perante o ente que a ama e espera, essa pessoa jamais conseguirá jogar fora a sua vida. Ela sabe do "porquê" de sua existência - e por isso também conseguirá suportar quase todo "como". Viktor E. Frankl- Um Psicólogo no Campo de Concentração
"Sofrimento como vitória   Uma vez que se nos revelara o sentido do sofrimento, também nos negávamos então a ficar desfazendo ou minimizando o volume de sofrimento que havia no campo de concentração, seja "reprimindo-o" ou iludindo-nos a respeito do mesmo com otimismo barato ou artificial. Para nós também o sofrimento passara a ser uma incumbência cujo sentido não mais queríamos excluir. Para nós ele tinha revelado o seu caráter de conquista, aquele caráter de conquista que levou Rilke a exclamar: "Wieviel ist aufzuleiden!" (Quanto sofrimento há por resgatar!) Rilke falava de resgatar o sofrimento como outros diriam cumprir uma tarefa.   Havia muito sofrimento esperando ser resgatado por nós. Por isso, era também necessário olhar de frente a situação, a avalanche de sofrimento, apesar do perigo de alguém "amolecer" e quem sabe, em segredo deixar as lágrimas correr livremente. Não precisaria envergonhar-se dessas lágrimas. Eram o penhor de ele ter a maior das coragens - a coragem de sofrer. Mas pouquíssimos sabiam disso, e só envergonhados admitiam ter-se extravasado em lágrimas de novo. Certa vez perguntei a um companheiro como fizera desaparecer os seus edemas de fome, ao que ele confessou: "Curei-os chorando..." Viktor E. Frankl - Um Psicólogo no Campo de Concentração
 "Precisamos aprender e também ensinar às pessoas em desespero que a rigor nunca e jamais importa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas sim exclusivamente o que a vida espera de nós. Falando em termos filosóficos, se poderia dizer que se trata de fazer uma revolução copernicana. Não perguntamos mais pelo sentido da vida, mas nos experimentamos a nós mesmos como os indagados, como aqueles aos quais a vida dirige perguntas diariamente e a cada hora - perguntas que precisamos responder, dando a resposta adequada não através de elucubrações ou discursos, mas apenas através da ação, através da conduta correta. Em última análise, viver não significa outra coisa que arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo cumprimento das tarefas colocadas pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento da exigência do momento.   Essa exigência, e com ela o sentido da existência, altera-se de pessoa para pessoa e de um momento para o outro. Jamais, portanto, o sentido da vida humana pode ser definido em termos genéricos, nunca se poderá responder com validade geral a pergunta por este sentido. A vida como a entendemos aqui não é nada vago, mas sempre algo concreto, de modo que também as exigências que a vida nos faz sempre são bem concretas. Esta concreticidade está dada pelo destino do ser humano, que para cada um sempre é algo único e singular. Nenhum ser humano e nenhum destino pode ser comparado com outro; nenhuma situação se repete. E em cada situação a pessoa é chamada a assumir outra atitude. Para a sua situação
concreta exige dela que ela aja, ou seja, que ela procure configurar ativamente o seu destino; ora, que ela aproveite uma oportunidade para realizar valores simplesmente vivenciando (por exemplo, gozando); outra vez, que ela simplesmente assuma o seu destino. Mas sempre é assim que toda e qualquer situação se caracteriza, por esse caráter único e exclusivo que somente permite uma única resposta" correta à pergunta contida na situação concreta.   Quando um homem descobre que seu destino é sofrer, tem que ver neste sofrimento uma tarefa sua e única. Mesmo diante do sofrimento, a pessoa precisa conquistar a consciência de que ela é única e exclusiva em todo o cosmo-centro deste destino sofrido. Ninguém pode assumir dela isso, e ninguém pode substituir a pessoa no sofrimento. Mas na maneira como ela própria suporta este sofrimento está também a possibilidade de uma vitória única e singular. " Viktor E. Frankl - Um Psicólogo no Campo de Concentração