sábado, 25 de maio de 2013

"A terceira fase: após a libertação   Voltamo-nos agora para a terceira parte da psicologia do campo de concentração - a psicologia do prisioneiro recém-liberto.   Dada a natureza do assunto, a descrição da experiência de libertação já não poderá ser impessoal. Começamos por aquele ponto em nosso relato em que após dias da mais intensa expectativa, tremulava certa manhã a bandeira branca no portão do campo. Esta altíssima tensão anímica foi sucedida por uma distensão interior total. Quem pensa que nossa alegria foi geral está redondamente enganado. O que realmente aconteceu?   A passos lentos os companheiros se arrastam em direção ao portão do campo. Mal e mal as pernas os sustentam. Olham timidamente em volta, cada qual encara o outro com uma pergunta nos olhos. Dão os primeiros passos temerosos para fora do campo de concentração. Desta feita não se ouve nenhuma voz de comando, ninguém tenta esquivar-se de um soco ou pontapé. Ah não, desta vez os guardas oferecem cigarros. A gente não os reconhece de saída, pois entrementes se apressaram em vestir-se à paisana. Vamos andando devagar, seguindo pela estrada de acesso. Minhas pernas já começam a doer ameaçando falhar em sua função. Vamos nos arrastando, queremos ver pela primeira vez os arredores do campo de concentração, ou melhor, vê-los pela primeira vez como pessoa livre. Apreciamos a natureza e entramos para a liberdade. "Para a liberdade", vou dizendo, e o repito várias vezes em pensamento; mas simplesmente não se consegue apreendê-lo. Em tantos anos de sonhos e de saudades, o termo liberdade ficara muito gasto. Seu conceito perdera os contornos. Confrontado com a realidade, ele se confunde. A nova realidade ainda não consegue penetrar direito no consciente. Simplesmente não se consegue apreendê-la ainda. Chega-se a um campo. Nele se vêem flores. Toma-se conhecimento de tudo isso, mas não se chega a "tomar sentimento". A primeira centelha de alegria salta ao se perceber um galo de vistosa cauda multicor. Mas fica nisto, nesta centelha de alegria, e ainda não se participa do mundo. A gente se senta debaixo de um castanheiro sobre um pequeno banco; só Deus sabe a expressão do rosto naquela hora. Em todo caso: o mundo continua sem causar impressão.   À noitinha, quando voltam a se reunir os companheiros em seu velho barracão, um chega para o outro e lhe pergunta às escondidas: "Diga-me uma coisa: você chegou a ficar contente hoje?" O outro responde: "Para ser franco, não!" E fica envergonhado, porque não sabe que com todos é assim. Literalmente
desaprendemos o sentimento de alegria. Será necessário aprender de novo a alegrar-se.   Sob o ponto de vista psicológico, pode-se chamar de verdadeira despersonalização aquilo que os companheiros libertos experimentaram. Tudo parece irreal e improvável. Tudo parece apenas um sonho. Ainda não se consegue acreditá-lo. Foram demais, muito demais as vezes em que o sonho nos iludiu nesses últimos anos. Quantas vezes sonhamos que viria este dia em que nos poderíamos movimentar livremente? Quantas vezes sonhamos estar chegando em casa para abraçar a esposa, saudar os amigos, sentar com eles à mesa e começar a contar tudo aquilo que se passou durante estes anos? Quantas vezes antecipamos em sonhos esse dia de reencontros - e agora, realmente teria chegado este momento? Sempre havia três silvos estridentes ferindo o ouvido, dando o comando de "levantar", arrancando a gente do sonho, da liberdade, e como mero sonho se revelava pela enésima vez. E agora deveríamos acreditar, de uma hora para a outra? Agora essa liberdade seria realidade verdadeira?   Mas é isto mesmo, um dia. O corpo não tem tantas inibições como a alma. A partir do primeiro instante em que se lhe abre a possibilidade, ele aproveita a realidade e deita a mão nela, literalmente: a gente come a não poder mais, horas a fio, dias a fio, a metade da noite. Incrível o quanto se consegue comer. Um ou outro recluso liberto é convidado por agricultores amáveis nas proximidades do campo, e então ele come, e toma café, e solta sua língua, e começa a contar coisas, horas e horas a fio. Descarrega-se a pressão que estava sobre ele durante tantos anos. A forma de contar da impressão de que a pessoa em questão estaria sob uma espécie de compulsão anímica, tanta é a ânsia de contar, a necessidade de falar. (Pude observar este fenômeno também em pessoas que mesmo por pouco tempo estiveram sob pressão muito grande, como por exemplo, em interrogatórios da Gestapo.)   Passam-se dias, muitos dias, até que se solte não somente a língua, mas também algo dentro da gente. De repente o sentimento abre uma brecha naquela estranha barreira repressiva que o recalcara. E então, dias após a libertação, vais andando pelo campo livre, atravessando campinas floridas, rumo a um lugarejo nos arredores do campo de concentração; cotovias se alçam para as alturas e ouves o seu canto de alegria que ressoa no alto do ar livre. Em toda a volta não se enxerga vivalma. O que te cerca é campo aberto, a terra, o céu, o regozijo das cotovias e o espaço livre; nada mais. Interrompes tua caminhada neste espaço livre, para, olhar ao redor e olhas para o alto - e te prostras de joelhos. Neste momento não sabes muito de ti mesmo nem muito sobre o mundo. Dentro de ti apenas ouves as palavras, e sempre as mesmas palavras: "Na angústia gritei para o Senhor, e ele me respondeu no espaço livre." - Quanto tempo ficaste ali ajoelhado? Quantas vezes repetiste aquelas palavras? A lembrança já não sabe dizer. . . Mas naquele dia, naquela hora, começou tua nova vida - isto sabes. E é passo a passo, não de outro modo, que entras nesta nova vida, tornas a ser homem. "  Viktor  E Frankl - Um Psicólogo no Campo de Concentração

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