quinta-feira, 23 de maio de 2013

"— Chorais pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que virão serão ainda piores. Foi por isso que fizeram esta guerra, para en- venenar o ventre do tempo, para que o presente parisse monstros no lugar da esperança. Não mais procureis vossos familiares que saíram para outras terras em busca da paz. Mesmo que os reen- contreis eles não vos reconhecerão. Vós vos convertêsteis em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos tir- ar do país mas para tirar o país de dentro de vós. Agora, a arma é a vossa única alma. Roubaram-vos tanto que nem sequer os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos pertence, e até o céu e o mar ser- ão propriedade de estranhos. Será mil vezes pior que o passado pois não vereis o rosto dos novos donos e esses patrões se servirão de vos- sos irmãos para vos dar castigo. Ao invés de combaterem os inimi- gos, os melhores guerreiros afiarão as lanças nos ventres das suas próprias mulheres. E aqueles que vos deveriam comandar estarão entretidos a regatear migalhas no banquete da vossa própria destru- ição. E até os miseráveis serão donos do vosso medo pois vivereis no reino da brutalidade. Terão que esperar que os assassinos sejam

mortos por suas próprias mãos pois em todos haverá medo da justiça. A terra se revolverá e os enterrados assomarão à superfície para virem buscar as orelhas que lhes foram decepadas. Outros pro- curarão seus narizes no vómito das hienas e escavarão nas lixeiras para resgatarem seus antigos órgãos. E há-de vir um vento que ar- rastará os astros pelos céus e a noite se tornará pequena para tantas luzes explodindo sobre as vossas cabeças. As areias se voltearão em remoinhos furiosos pelos ares e os pássaros tombarão extenuados e ocorrerão desastres que não têm nome, as machambas serão conver- tidas em cemitérios e das plantas, secas e mirradas, brotarão apenas pedras de sal. As mulheres mastigarão areia e serão tantas e tão es- faimadas que um buraco imenso tornará a terra oca e desventrada. No final, porém, restará uma manhã como esta, cheia de luz nova e se escutará uma voz longínqua como se fosse uma memória de antes de sermos gente. E surgirão os doces acordes de uma canção, o terno embalo da primeira mãe. Esse canto, sim, será nosso, a lembrança de uma raiz profunda que não foram capazes de nos arrancar. Essa voz nos dará a força de um novo princípio e, ao escutá-la, os cadáveres sossegarão nas covas e os sobreviventes abraçarão a vida com o in- génuo entusiasmo dos namorados. Tudo isso se fará se formos capazes de nos despirmos deste tempo que nos fez animais. Aceitemos morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra nos converteu. " Mia Couto- Terra Sonâmbula

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