sábado, 25 de maio de 2013

"Ausência de sentimentos   Na grande maioria dos prisioneiros, a preponderância dos instintos primitivos e a peremptória necessidade de se concentrar sobre a pura e simples preservação da vida constantemente ameaçada, suscitam uma depreciação radical de tudo aquilo que não serve a este interesse exclusivo. Assim se explica a ausência absoluta de sentimentos por parte do prisioneiro quando avalia os acontecimentos. Quando inexperiente, tomei consciência desta frieza de forma drástica, ao ser transferido de Auschwitz para um campo filial em Dachau, na Baviera. O trem, que transportava cerca de dois mil prisioneiros, passava por Viena. Cruzamos por uma estação vienense depois da meia-noite. O percurso seguinte passava defronte ao beco em que está a casa onde nasci e na qual vivi décadas inteiras da minha vida, até o momento em que fui deportado. Éramos cerca de cinquenta homens num pequeno vagão de prisioneiros, que tinha duas pequenas aberturas com grades. Apenas alguns de nós podiam sentar-se no chão, enquanto os demais eram forçados a ficar de pé horas a fio. Estes geralmente se apinhavam junto às aberturas. Eu também era um deles. Aquilo que pude entrever da minha cidade natal, por entre as cabeças à minha frente e através das grades, pondo-me nas pontas dos pés, tinha para mim um aspecto fantasmagórico ao extremo. Todos nos sentíamos mais mortos que vivos. Supúnhamos que o transporte se dirigisse para Mauthausen. Por isso, achávamos que não viveríamos mais que uma ou duas semanas, em média. Enxergava as ruas, praças e casas da minha infância, da minha terra natal, - era um sentimento bem nítido – como se eu já tivesse morrido, como um morto olhando do além, um fantasma a contemplar esta cidade de aspecto fantasmagórico. O trem parte da estação, depois de longas horas de espera. Agora vem o beco - o meu beco! Começo a implorar como um mendigo. Os que estão à minha frente são
jovens, embora já tenham atrás de si muitos anos no campo de concentração, razão por que uma viagem como aquela representa para eles uma rica safra de novas impressões e experiências, de modo que ficam espiando com muita curiosidade pela abertura. Peço-lhes que me deixem passar à frente só por um momento. Procuro mostrar o que representa para mim olhar para fora naquele instante. Meio bruscos, meio indignados, com deboche e desprezo na voz, eles rejeitam meu pedido, que é quitado com a observação: "Tantos anos você viveu ali? Bom, então já viu o suficiente!"  Victor E. Frankl - Um Psicólogo no Campo de Concentração

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